sábado, 24 de abril de 2010

Escrever com a câmera: Godard

Como boa parte da produção sobre artes em geral (e cinema em particular) publicada no Brasil, Escrever com a câmera – A literatura cinematográfica de Jean-Luc Godard, de Mário Alves Coutinho, é subproduto de pesquisa realizada no âmbito de uma pós-graduação. O livro, em linhas gerais, investiga a criação de Godard a partir de um conjunto de conceitos aparentados à literatura – ao contrário do que são as abordagens tradicionais sobre a obra de um cineasta, que buscam aproximar-se dela a partir da biografia ou de princípios do próprio cinema. No processo, confronta vícios e virtudes que costumam atravessar as obras que resultam de pesquisa acadêmica, abrindo assim, aos leitores, um duplo caminho para novas investigações: um, ligado ao conteúdo, pelo olhar singular com que observa a obra de Godard; outro, que poderíamos associar à forma, nos fala de como oferecer conteúdos complexos sem transformá-los em algo hermético. Dissertações, teses e suas defesas não constituem apenas relatórios de uma pesquisa ou debates sobre ela. Têm, também, o sentido de um rito de passagem, representam, simbolicamente, uma mudança significativa na condição existencial do pós-graduando – através delas, ele deixa de ser um leigo e é admitido formalmente em confrarias a que pretende ascender, a dos professores, a dos cientistas, à própria academia em si. Este dado (ao qual, no Brasil, acrescenta-se o status legal dos títulos como atestados de capacitação profissional, sem os quais certas ocupações não podem ser exercidas) frequentemente transforma os relatórios em textos que parecem dirigidos apenas às bancas que os julgarão. Em seu livro, Mário Alves Coutinho escapa sabiamente deste vício. Parte desse sucesso deve-se a sua intimidade com a linguagem em geral, e a escrita em particular. O estilo de Escrever com a câmera é resultado de décadas do trabalho de Mário escrevendo e publicando crítica de cinema em veículos como este, o Estado de Minas, participando de debates públicos ao vivo ou pela televisão, traduzindo e por aí vai. Não é um relatório de pesquisa, mostra-se, antes, como uma boa conversa com o leitor sobre um tema pelo qual o autor é apaixonado. Esse jeito de conversa mostra-se essencial para que seja alcançado o efeito mencionado acima: a possibilidade de clareza na apresentação de um tema usualmente percebido, tanto pelos leigos quanto pela academia, como sendo complexo. Em geral, estamos acostumados a discursos herméticos sobre os tais temas mais complexos. Quem já leu Barthes ou Delleuze sabe, exatamente, do que se fala aqui (e isso vale tanto para os que amam quanto para os que detestam estes autores): multiplicam-se os neologismos, expandem-se as interpretações, proliferam os jogos de palavras. Em Escrever com a câmera, Mário Alves Coutinho rema contra essa corrente. A estrutura de sua tese é até convencional: apresentação dos pressupostos gerais de sua pesquisa; exposição das situações específicas que considera essenciais à compreensão de suas ideias (o primeiro capítulo do livro, em que o ambiente onde Godard cresceu é mostrado através de textos sobre pessoas e eventos que o teriam influenciado, é magistral na percepção de como teriam surgido certos traços da obra e da personalidade do cineasta); estudo de casos que confirmam a hipótese (filmes do diretor, em confronto com certos processos de aproximação ou tensão com a literatura); conclusão. A essa estrutura se incorpora, em certo sentido, a explicação dos neologismos, o debate sobre os limites das interpretações, a busca da compreensão dos jogos de palavras – ou seja, estamos não apenas diante de um discurso sobre Godard, cinema ou literatura, mas diante de um discurso sobre discursos a respeito destes temas. Outro elemento de Escrever com a câmera que facilita a comunicação com o público é o fato de ser uma obra nitidamente autoral. Começa com a escolha do tema – toda a geração de críticos a que Mário Alves Coutinho pertence é ou foi apaixonada por Godard e a Nouvelle Vague. Continua com a própria seleção de “casos” a serem estudados – são filmes “clássicos” (mesmo se soa paradoxal chamar de clássico um filme de Godard), com que o autor conviveu na época da formação de seu pensamento sobre cinema, mesmo se obras mais recentes do cineasta poderiam funcionar com a mesma eficiência. E termina com a maneira como se apropria das teorias e jargões que incorpora da literatura: frequentemente, relatos análogos, na ânsia de agradar os examinadores, parecem deixar de lado seus objetos de pesquisa para se transformarem em demonstrações de como os autores lidam bem com os conceitos de seu campo de conhecimento. Em Escrever com a câmera, Godard é sempre o centro de nossa atenção, e tudo o mais, conceitos de cinema e literatura, ou métodos de abordagem possíveis, parece estar a serviço de nossa aproximação com sua obra. A paixão mencionada acima é sempre uma armadilha. Como boa parte das obras sobre arte e filosofia, Escrever com a câmera parte do pressuposto de que o valor de seu objeto de estudo é incontestável. Sobre ele não cabe juízo crítico, aplicável apenas a partir dele. Quem procurar no livro um olhar que guarde certo estranhamento de Jean-Luc Godard perderá seu tempo. As possíveis consequências daquela paixão, contudo, são amenizadas pela própria abordagem. Por mais que seja um leitor obsessivo ou um tradutor, a teoria literária não é espaço e nem origem do pensamento cotidiano de Mário Alves Coutinho. Constitui, para ele, território novo – ao contrário do que ocorre com a teoria do cinema. Se Godard, em si, é objeto de sua paixão (e, portanto, inseparável de sua visão de mundo), as ferramentas que usa na investigação não o são. Em relação a elas, ele é capaz de manter aquele estranhamento. Sua paixão, aqui, é pelo que está descobrindo, e não pelo que já conhece. Consequência disso é a própria determinação de uma hierarquia entre literatura e cinema. O subtítulo de Escrever com a câmera é A literatura cinematográfica de Jean-Luc Godard, e não “o cinema literário”. Insinua uma precedência – a possibilidade de pensarmos o cinema ou pelo menos certo cinema (o de Godard e alguns outros cineastas) como gênero literário. O que, radicalizando o raciocínio, nos levaria a questionar até mesmo a autonomia do cinema frente às outras artes (e Escrever com a câmera é extremamente eficiente em investigar citações que remetem a essa possibilidade). Se isso pode incomodar os puristas do “específico fílmico”, pode, também, abrir boas portas a novas pesquisas, e na direção oposta: a partir da maneira como Mário Alves Coutinho investiga uma “literatura cinematográfica”, e usando os mesmos instrumentos teóricos, poderíamos, por exemplo, correr atrás do “cinema literário” de autores como Honoré de Balzac ou Paul Valéry (só para mencionar duas paixões literárias de Godard). O melhor numa obra não é necessariamente o que ela diz, mas as possibilidades que abre para novas pesquisas e criações.
Marcello Castilho Avellar, Estado de Minas, 24/04/2010