quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010

Plágio e intimidação

A tradutora Denise Bottmann tem feito um trabalho digno de aplauso [e apoio!] na divulgação de plágios em traduções, cometidos por editoras brasileiras. O plágio é uma prática deplorável e sua denúncia e eliminação deveria ter o suporte unânime de livreiros, editores e de todo cidadão consciente. Infelizmente não é o que acontece: a grande maioria das livrarias continua vendendo livros comprovadamente plagiados como se fosse a coisa mais normal do mundo. E as editoras que cometem os plágios continuam vendendo seus livros como edições dignas do nome.
Além de não ter [ainda] o apoio expresso das entidades do meio editorial [SNEL, CBL, LIBRE, ABEU, ABDR], Denise enfrenta outro problema: a intimidação por parte dos plagiadores.
Já fomos vítimas em um caso semelhante: ao denunciar um plágio da edição da Cia das Letras de Glaura [nem foi a nossa edição], fomos citados pelos plagiários, que nos ameaçaram com pedido de indenização por calúnia e difamação.
Todos podem e devem defender seus direitos, inclusive os acusados de plágio. Mas a situação é diferente. Quando publicou a informação sobre o plágio, Denise Bottmann deu amplo direito de manifestação ao Sr. Fábio Cyrino e à Landmark, assim como costuma fazer em todos os casos divulgados pelo blog Não Gosto de Plágio. Se há algum argumento plausível para a edição espúria da Landmark, que seja apresentado e será divulgado com o mesmo destaque no mesmíssimo local em que o sr. Cyrino foi exposto [prefiro esse termo ao difamado que ele alega].
A Crisálida Livraria nunca comercializou edições da Martin Claret [talvez a mais sistemática e notória plagiária de que se tem notícia] e, após a constatação do plágio do livro Persuasão, de Jane Austen, demonstrado no cotejo das edições apresentado pela Denise, deixamos de comercializar também os livros da Landmark.
Bom seria se os livreiros agissem em defesa do leitor e retirassem de comércio essas edições espúrias. Infelizmente a maior parte prefere fingir que não sabe ou usar o recurso legalista de "só tiraremos de comércio se formos citados judicialmente".

Plágio de tradução

Editora processa blogueira: pode plagiar esta notícia
A tradutora e blogueira Denise Bottmann, do site Não Gosto de Plágio, precisa de ajuda. Caçadora mais ou menos solitária de picaretas editoriais, está sendo processada pela editora Landmark, que pede ao juiz indenização mais a retirada de seu blog do ar – informa Alessandro Martins, do blog Livros e Afins. Tudo por ter denunciado que a tradução de “Persuasão”, de Jane Austen, lançada pela Landmark com a assinatura de um de seus proprietários, Fábio Cyrino, seria praticamente um xerox de uma antiga – e fraca – tradução portuguesa da lavra de Isabel Sequeira, até em seus numerosos erros. A blogueira Raquel Sallaberry, do Jane Austen em Português, também está sendo processada pela editora.

Caso a denúncia seja mesmo na mosca, como os exemplos citados em seu blog indicam (tem até uma mesma gralha cômica, “átrio” virando “trio” em ambos os textos), Denise terá exposto mais uma vez o golpe de requentar traduções sem pagamento de direitos, bandeira de subdesenvolvimento cultural que infelizmente está longe de ser novidade no Brasil. Se você também não gosta de plágio, ajude a espalhar a notícia.

Sérgio Rodrigues, do Todoprosa

terça-feira, 23 de fevereiro de 2010

Sindicalismo no Brasil: os primeiros 100 anos?

José Reginaldo Inácio (org.). O sindicalismo no Brasil: os primeiros 100 anos? Belo Horizonte: Crisálida, 2007.

O sindicalismo brasileiro nasceu no século passado com o fortalecimento das indústrias na economia nacional. De lá para cá, não deixou de influenciar a vida do País. Foi graças à organização dos trabalhadores que conquistamos os direitos que nos protegem, garantimos avanços democráticos e o desenvolvimento nacional.
Tivemos muitas conquistas e vitórias importantes e também sofremos derrotas e perseguições. Nenhum direito, nada nos foi dado de graça. Custou muito sacrifício e tudo foi muito difícil.
Assim, o sindicalismo brasileiro não nasceu ontem. Tem uma longa história de serviços prestados ao Brasil e ao seu povo.
Desde 1949, quando comecei no sindicalismo, no Departamento de Força e Luz até o Conclat, realizado em agosto de 1981 – passando pelas lutas em defesa da Previdência, pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Indústria (CNTI), pelo Comando Geral dos Trabalhadores, pela OIT e pela Assembléia de Minas Gerais – sempre defendi os trabalhadores e sua unidade sindical.
Sinto que valeu a pena. Tenho a sensação de dever cumprido e recompensado pela luta incessante a as inúmeras conquistas dos brasileiros.
Hoje, eu não consigo entender como algumas pessoas e sindicalistas podem apoiar a retirada de direitos previdenciários e trabalhistas, tão importantes e duramente conquistados.
Para mim, a forma de enfrentar a exploração é muita força e muita união. Sou pela unidade dos trabalhadores e é dentro deste princípio que defendo a tese que não há lugar para discriminação no movimento sindical. Dentro do sindicato não vejo opção política, partido ou religião. Eu vejo trabalhador lutando pelos seus interesses e isso é o que importa.
O movimento sindical brasileiro precisa superar as atuais dificuldades e dar passos à frente.
Por isso, é com grande alegria e satisfação que vejo uma publicação como esta. Ela reúne estudiosos e dirigentes políticos e sindicais de diversas origens e opções políticas e aí esta a sua força. São análises, avaliações, balanços e propostas que valorizam o movimento dos trabalhadores e certamente, colaborarão para a busca de novos caminhos.
por Clodesmidt Riani

BHPMMG


A Editora Crisálida apresenta ao público uma pequena preciosidade. A Breve História da Polícia Militar de Minas Gerais, de Francis Albert Cotta, vem cobrir uma grave lacuna historiográfica, qual seja, a da elaboração de um trabalho efetivamente acadêmico sobre a História da Polícia Militar.
É verdade que existem obras outras que tratam da história dessa importantíssima corporação. Contudo, são trabalhos diletantes, de apreciadores da História, que pretenderam registrar a memória da Polícia Militar. Daí a importância do trabalho de Francis Cotta.
O autor defendeu tese de doutorado em História (No rastro dos Dragões: universo militar luso-brasileiro e as políticas da ordem nas Minas setecentistas) após ter realizado uma pesquisa verticalizada nos arquivos de Minas Gerais e de Portugal.
Os resultados do extenso arrolamento de dados feito pelo autor trouxeram à luz informações sobre a PMMG que, durante séculos, ficaram guardadas em documentos nos arquivos à espera de serem manuseados, coletados e sistematizados.
Deste trabalho e do seu interesse pela corporação, da qual faz parte, Francis Albert Cotta escreveu esse pequeno, mas precioso livro, que permite a todos conhecerem a história da Polícia Militar de Minas Gerais no longo período compreendido entre a temporalmente distante América Portuguesa e os recentes anos 1990.
O autor inicia seu livro tratando da ponte possível entre o passado e o presente; das relações imbricadas entre História e Memória. A Breve História da Polícia Militar de Minas Gerais possibilita guardar a memória da corporação: da sua formação, de seus primeiros tempos, da sua profissionalização e da sua inserção na sociedade.
Dos Dragões Del Rei, tropa paga e regular e dos corpos auxiliares e irregulares, como as milícias, as ordenanças e os terços de pardos e negros, que atuavam na América Portuguesa, à Polícia Militar dos nossos dias um longo caminho foi percorrido. As influências de concepções européias sobre a formação, qualificação e tratamento das tropas foram finamente analisadas pelo autor. Ressalte-se o exame de Francis Albert Cotta da Guarda Real da Polícia de Lisboa, tema inédito na historiografia brasileira que, mais uma vez, aponta para a importância da pesquisa histórica dedicada e séria.
A manutenção da ordem, tarefa precípua da Polícia Militar, foi abordada nos vários contextos históricos de crise no Brasil, quando a corporação foi chamada a atuar.
Recomendo enfaticamente a leitura desse livro. Uma nova porta sobre a História da Polícia Militar foi aberta: um convite para visitar uma nova história de uma das mais importantes corporações do estado de Minas Gerais.

Profª. Drª. Carla Maria Junho Anastasia (UFMG)

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

Os donos do poder nas Minas Gerais: comentários sobre “O segredo de Minas", de Amilcar Vianna Martins Filho

“O segredo de Minas: a origem do estilo mineiro de fazer política – 1889-1930” - Editora Crisálida

por Andrey Zanetti

Devo reconhecer que são poucos os trabalhos surpreendentemente bons quando falamos em pensamento brasileiro, ainda mais quando se trata de estudos regionais. Os estudiosos ufanam as regiões mais ricas pela sua grandeza; das mais pobres, buscam no passado sua história de glórias. Mas são poucos os estudos que se pode reconhecer como esforço intelectual, exercício de entendimento dessa complexa realidade nacional que se comunica com, não menos complexa, realidades regionais. Ler o trabalho de Amilcar Vianna Martins Filho é deparar com um exemplo de texto limpo e claro, um excelente modelo de como se escrever uma tese seguindo o bom manual acadêmico, sem pirotecnias ou devaneios, infelizmente tão comuns hoje.
Resenhar o livro de Martins Filho é um trabalho que envolve mais do que simplesmente tecer comentários bajuladores; exige destacar os segredos presentes nas possíveis interpretações de seu discurso. Dessa forma, proponho para esse exercício seguir alguns caminhos que, por não terem uma ordem exata de importância, são apresentados de forma aleatória e dentro de algumas conveniências.
Primeiro, deve-se destacar a qualidade estilística do discurso. É um trabalho conciso, claro, bem ao estilo de narrativa acadêmica americana. O argumento é exposto de forma clara, sem qualquer dúvida. O que para alguns leitores poderia parecer falta de criatividade ou simplismo, revela-se um refinamento do trabalho. A aparente simplicidade é a estratégia escolhida pelo autor na exposição de seus argumentos, em que a clareza torna muito difícil refutá-los. Cada capítulo inicia apresentando uma hipótese, as teses em contrário, seu argumento, análises favoráveis e um rico material que servirá como ilustração comprobatória de seus argumentos exposto de forma harmoniosa, algo muito difícil, mas que o autor provou não ser impossível.
Outro caminho para interpretar o trabalho de Martins Filho é identificar a linhagem acadêmica. O livro é uma versão de sua tese de doutorado, defendida nos EUA e sob orientação de Joseph L. Love, que é autor de um dos livros que compõe uma trilogia de estudos de brasilianistas americanos, publicados pela editora Paz e Terra na década de 1980: John D. Wirth (O Fiel da Balança: Minas Gerais na Federação Brasileira 1889-1937), Joseph L. Love ( A Locomotiva: São Paulo na Federação Brasileira 1889-1937) e Robert M. Levine (A Velha Usina: Pernambuco na Federação Brasileira 1889-1937). Assim, Amilcar Martins se liga a essa linhagem dos brasilianistas americanos e aos vários estudos regionais por eles desenvolvidos, com o mesmo rigor metodológico e a mesma riqueza de dados estatísticos. Eu poderia ficar por aqui em minha análise, discorrendo sobre os pontos positivos e negativos, e até a minha relativa desconfiança em relação às qualidades gerais dos trabalhos dos brasilianistas americanos, mas é mais importante desenvolver um terceiro caminho de interpretação.
O trabalho de Martins Filho se destaca por continuar uma linhagem de estudos sobre o Pensamento Brasileiro em uma tradição weberiana. Mais especificamente, o seu trabalho pode ser pensado como uma extensão de um estudo já tomado como um clássico, a obra Os donos do poder de Raymundo Faoro, inegavelmente de grande fôlego e de competência intelectual. Boris Fausto, no prefácio de O segredo de Minas, já destaca que o autor sustenta a interpretação do caráter patrimonialista da formação histórica do Brasil (p. XIV). A noção de patrimonialismo, absorvida da obra de Faoro, funcionará como interpretação teórica do modelo da representação de interesses. O legado de Faoro fica bem claro quando Martins Filho afirma: “Nesse estudo, procurarei demonstrar que o desenvolvimento histórico de Minas, tanto na esfera econômica quanto na política, marcado que foi pela presença precoce de forte aparato estatal português, dificultou a articulação de interesses privados e levou ao estabelecimento de um sistema político do tipo patrimonial. Particularmente a partir da crise do setor cafeeiro que ocorreu nos últimos anos do século XIX, os principais processos e articulações da política mineira tiveram como foco de referência o patrimonialismo político. Em tal perspectiva interpretativa, uma hipótese central deste estudo ode ser assim formulado: a unificação da política mineira resultou, primordialmente, de amplo e abrangente processo de cooptação política de todos os grupos e facções que tinham algum poder de pressão dentro do Estado. Nesse processo, a representação consistente de interesses econômicos não desempenhou papel especial.” (p. 07).
O caráter patrimonial do Estado é definido pela indistinção da riqueza particular pública, argumento que permitiu a Faoro desfechar uma série de críticas, muito especialmente aos historiadores ligados ao marxismo ortodoxo, quando ataca a análise do “modo de produção” e os estudos sobre os “restos feudais” nos países subdesenvolvidos. Faoro deixa claro ser contrário à tese de retrocesso feudal no processo colonial. Para ele, o processo colonial é um capítulo da história do comércio europeu. Afirma, contra o argumento de feudalização do Brasil, que a empresa de plantação teve nítido cunho capitalista – dentro do capitalismo mercantil e politicamente orientado do século XVI português. Ainda em Os donos do poder, Faoro desenvolve seu argumento até a República, apontando o desenvolvimento das instituições como objeto dos interesses privados em detrimento de suas obrigações públicas, extensão dos primeiros capítulos de nossa colonização. Negando a máxima do marxismo de que o Estado é aparelho da burguesia (entende-se a burguesia econômica), demonstra que se formou no Brasil uma elite não necessariamente econômica – quer dizer ligada diretamente aos interesses econômicos –, mas que se profissionaliza em defesa de seus interesses.
Martins Filho, com menos fôlego, mas não com menos qualidade, irá seguir esse argumento. Primeira questão que levanta: diferente de São Paulo, a expansão do café, absorvida nas últimas décadas do século XIX não teve impacto direto na ascensão do Estado de Minas Gerais na política nacional. Minas só veio a se tornar ator político relevante no âmbito federal durante a grave crise do mercado internacional do café, na segunda década republicana (p. 02).
A posição da historiografia em relação à política do café-com-leite é de explicar a política “doméstica” de Minas a partir da tese da representação de interesses do setor cafeeiro que, supostamente, seria dominante no Estado. O estudo de Martins Filho é contrário às interpretações da historiografia tradicional: a política mineira não representava o setor cafeeiro ou qualquer outro interesse econômico específico do Estado, tornando possível construir uma bem sucedida coalizão no âmbito da política doméstica e, também, desempenhar papel estratégico na política nacional. Demonstra que na reorganização da política mineira e na negociação da aliança com São Paulo, a alegada força política dos cafeicultores mineiros está mais na esfera do mito do que no mundo dos fatos históricos (p. 06).
E será exatamente o que fará em todo o livro. Uma das lições mais simples e muitas vezes esquecidas, o discurso acadêmico é o de convencer o leitor da veracidade de uma hipótese. As ciências humanas têm a diferença, em relação às ciências naturais, de precisar exercitar muito mais a imaginação e a riqueza narrativa. As ciências naturais se orientam por “evidências que são apresentadas pela realidade e que podem ser testadas, refeitas e reproduzidas infinitamente”. Cabe a nós produzir imagens, encontrar vestígios de provas e ser julgados pelos nossos pares. Martins Filho realiza esse trabalho com perfeição e bem cercado de imagens. A grande massa de dados estatísticos dialoga perfeitamente como o texto, buscando responder a todas as questões que se colocou.
Finaliza seu trabalho afirmando que a chave do sucesso e estabilidade de todo o sistema de política patrimonial do Estado foi a construção de uma coalizão de todos os setores da elite estadual, que obteve legitimidade entre as classes médias e altas por meio de instrumentos clientelísticos de cooptação. Atividade política como fim econômico em si mesmo será a fonte direta e única de renda. Os membros da elite política mineira, por seu caráter não ideológico e pragmático da política, exemplificam o que Max Weber identificou como políticos profissionais, que viviam da política e para a política.
O verdadeiro segredo dos políticos mineiros foi o de primeiro descobrir e, depois, sedutoramente por em prática as virtudes da negociação e da conciliação (MARTINS FILHO, p. 237).
Ler O segredo de Minas foi deparar com uma idéia bem mineira, de que o simples não pode ser nunca “simplório”.
Minha crítica é centrada num fato que o autor e seu prefaciador tentaram explicar, mas ainda resisto em aceitar seus argumentos. A tese de Martins Filho (The white collor republic) foi defendida em 1986. Somente hoje, com o desenvolvimento de tecnologia de comunicação que podemos ter algum acesso facilitado a materiais acadêmicos de qualquer lugar do mundo. Foram precisos 23 anos, e acredito que muita insistência, para que seu estudo se tornasse viável ao público mais geral – insanos que estudam ou curiosos em pensamento brasileiro, Minas Gerais, Primeira República, etc.
Essa distância de pouco mais de duas décadas e sua pouca divulgação acabam levando a alguns erros. Um exemplo pode esclarecer o que quero dizer. O trabalho de Helena Bomeny (Guardiães da razão, 1994), resultado de sua tese de doutorado, faz categórica referência à tese de Martins Filho. Até mais do que isso: ela afirma que Martins Filho acompanha, exaustivamente, o processo de unificação da política interna mineira na primeira década pós-República, onde defende a tese de que é exatamente por não ter representado o interesse cafeeiro, ou especificamente qualquer outro interesse econômico, que a elite política mineira pôde construir uma forte coalizão interna e, ao lado da elite paulista, controlar a política nacional. Vale-se do conceito de patrimonialismo, construção típico-ideal weberiano para caracterizar aquelas situações em que a representação de interesses perde em força a dimensão para os mecanismos que se constroem na órbita do poder central. Bomeny, como se é de se esperar da grande pesquisadora que é, compreende muito bem o trabalho de Martins Filho. Em relação à idéia de mineiridade presente no trabalho de Martins Filho, Bomeny afirma que a sua interpretação se distingue da dele ao vincular a mineiridade à confluência de dois fenômenos históricos e a uma geração de intelectuais: a proclamação da República, a criação de Belo Horizonte, cidade planejada e construída no final do século XIX como nova capital de Minas Gerais, e a primeira geração modernista mineira. A tensão entre anseio cosmopolita e experiência provinciana é o tom da análise que se desenvolve pelos intelectuais da Rua Bahia, sendo a marca do que a autora chama de o duplo em confronto.
Lendo atentamente ambos os trabalhos, vejo mais complementaridade que distinção. Há claramente uma evolução (os historiadores relativistas irão se morder de ódio e me chamar de evolucionista por causa dessa palavra), uma “continuidade-complementar” (para diminuir a raiva de alguns) entre os trabalhos. Uma “continuidade-complementar” com um grande avanço, importante e necessário, em relação ao trabalho de Martins Filho.
Ao ler O segredo de Minas, terminei a última página tendo muito claro que estava em minhas mãos um trabalho digno de ser colocado junto aos clássicos, referência inquestionável para estudiosos do pensamento político e social em Minas Gerais. Mas ele não está limitado a um estudo puramente regionalista, é uma importante obra de referência sobre a Primeira República. Vou além, é uma obra de referência das ciências humanas em geral, e um exemplo a ser seguido. E a melhor forma de dar o devido respeito a um trabalho como o de Martins Filho é exatamente o confrontar com outros materiais. A análise quantitativa séria de seu livro deve ser confrontada com outros dados – quantitativos ou qualitativos – tão sérios quanto. E é exatamente o que realiza Bomeny ao trabalhar com dados qualitativos, dá continuidade, complementa e avança.
O livro de Ângela Alonso (Idéias em movimento, 2002), ao tratar da geração de 1870, segue outro argumento presente no estudo de Martins Filho, de que Minas se diferencia de São Paulo em relação a sua posição política por defender interesses de um Estado com uma economia de exportação local e não voltado ao mercado internacional. Não cabe aqui expor todo o argumento de Alonso, mas destacar que o seu trabalho sobre a política no Brasil e os políticos da Geração de 1870, vai corroborar no trabalho de Martins Filho ao mostrar que há uma permanência de fatores internos que levam ao fortalecimento do modo mineiro de se fazer política.
Estabeleço uma linhagem temporal precária, mas como exercício, sem qualquer perigo de desonra. Faoro e sua monumental obra em 1973. Martins Filho, em 1986, irá dar continuidade-complementar aos Donos do Poder, tratando de um tempo-espaço bem específico, Minas Gerais na Primeira República. Bomeny segue, em 1994, na clareira aberta por Martins Filho.
E aí fica a confusão, o livro é de 2009. Antes tarde do que nunca...

Referências:
ALONSO, Angela. Idéias em movimento: a geração 1870 na crise do Brasil-Império. São Paulo: Paz e Terra, 2002.
BOMENY, Helena. Guardiães da razão: modernistas mineiros. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ/Tempo Brasileiro, 1994.
FAORO, Raymundo. Os Donos do Poder: formação do patronato político brasileiro. 9ª. Ed. São Paulo: Globo, 1991. (2 volumes).
MARTINS FILHO, Amilcar Vianna. O segredo de Minas: a origem do estilo mineiro de fazer política (1889-1930). Trad. Vera Alice Cardoso Silva. Belo Horizonte: Crisálida/ICAM, 2009.


O início do fim do gene

Resenha: Evelyn Fox Keller. "O século do gene". Tradução de Nelson Vaz. Belo Horizonte: Crisálida, 2002. 208 pgs.

"Evelyn Keller tem a habilidade perturbadora de te fazer pensar de novo, do princípio, sobre coisas que você pensava já ter entendido." Com essa afirmação, o geneticista norte-americano Richard Lewontin, da Universidade de Harvard e um dos melhores especialistas em genética de populações, resume a importância do livro escrito por Keller, uma professora de história e filosofia do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT) e também uma cientista. No Brasil, o livro foi muito bem traduzido e prefaciado por Nelson Vaz.
O livro começa com a origem da palavra gene, uma história pouco conhecida, mas muito importante pelas lições de filosofia da ciência nela contidas. Gene, palavra criada em 1909 pelo botânico e geneticista dinamarquês WilheIm johannsen (18571927), veio substituir as ‘gêmuIas’, unidades da hereditariedade criadas pelo naturalista inglês Charles Darwin (1809-1882), adotadas no lugar dos ‘determinantes’ criados pelo biólogo alemão August Weismann (1834-1914), que, por sua vez, substituíram os ‘pangenes’ propostos pelo geneticista holandês Hugo de Vries (1848-1935).
Todas essas palavras estão ligadas de alguma forma a teorias da hereditariedade preformacionistas. Johannsen sabia que a teoria do preformacionismo estava errada. A palavra gene tinha a grande vantagem de não estar associada a qualquer teoria ou hipótese de hereditariedade. Com essa nova palavra, evitava-se o preconceito e assim abria-se a possibilidade do avanço do conhecimento científico nessa área.
Gene é a palavra que abre a possibilidade para uma revolução – revolução no sentido utilizado pelo filósofo norte-americano Thomas Kuhn (1922-1996), em que novas premissas (paradigmas ou teorias) requerem a modificação das antigas teorias e a reavaliação dos fatos conhecidos. Essa não é uma mudança fácil ou simples. A ela se opõe a comunidade científica estabelecida, pois são os integrantes dessa comunidade os criadores das teorias vigentes a serem testadas, até que apresentem fraquezas reconhecidas pelos cientistas.
A obra de Keller é um magnífico livro de história da biologia do século 20 em apenas quatro capítulos. A contribuição mais importante é a visão crítica, Iastreada em fatos concretos, do determinismo genético. A idéia de que as características dos seres vivos são determinadas por unidades hereditárias chamadas genes (determinismo genético) é demolida elegantemente, assim como o conceito de programa genético. Richard Lewontin critica o determinismo genético afirmando ser ele uma espécie de preformacionismo moderno. Sua postura radical encontra, de certa forma, amparo factual neste livro. O ‘gene’ das leis de Mendel existe, sem dúvida, mas é um tipo raro de gene, sempre que presente se expressa fenotipicamente da mesma maneira. Os genes mais freqüentes são aqueles de penetrância incompleta e expressividade variável.
No momento em que as técnicas moleculares de análise de DNA são de uso generalizado na maioria dos laboratórios e no momento em que é divulgada a seqüência de nucleotídeos do genoma humano, com promessas de grande avanço na área da genética, é oportuna e necessária a leitura da obra de Evelyn Keller. Este magnífico livro nos mostra os limites da análise genética e a inevitabilidade de olhar, além do gene, a célula, o organismo e seu ambiente, isto é, a complexidade.
As palavras, em certo sentido, são como os seres vivos, nascem em um dado momento, no qual o seu significado é único, mas com o passar do tempo acumulam outros significados, a ponto de obrigar os escritores a usar a palavra seguida de um ‘senso fulano’. Quando a confusão reina absoluta, é melhor que essa palavra morra, já que por ter tantos significados não significa nada.
Tenho recomendado a leitura desta obra a meus alunos e colegas. Para minha surpresa, recebi recentemente do biólogo Rogério Parentoni, do Departamento de Ecologia, da Universidade Federal de Minas Gerais, o livro O citoplasina e o núcleo no desenvolvimento do hereditariedade. O conteúdo vem resumido em três tópicos: (1) O gene-partícula não existe: (2) O cromossomo funciona como um todo; (3) O citoplasma desempenha papel mais importante do que o núcleo nos tenômenos hereditários. Essas afirmações, defendidas hoje por Lewontin e Keller, entre outros, foram propostas em 1941 por Salvador de Toledo Piza Júnior, professor de zoologia e anatomia comparada da Universidade de São Paulo. Na época, suas idéias foram consideradas extravagantes. Hoje, elas abrem novos caminhos, mas ainda é tempo de homenagear o professor Toledo Piza, o mais brilhante citogeneticista brasileiro.

por Ricardo Iglesias Rios

Instituto de Biologia, Universidade Federal do Rio de Janeiro
publicado na Revista Ciência Hoje, maio de 2004.

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2010


A ciência parcial da palavra


por Leonardo Gonçalves


É possível que nunca o tema da Torre de Babel tenha surgido com tanta força como na atualidade. Vivemos num mundo onde as fronteiras não impedem o contato entre pessoas de diferentes nações e idiomas. A tecnologia digital nos possibilita uma aproximação que nenhum fabricante de lentes ou telefones jamais pôde supor. Essa proximidade tem algo de Babel, pois ao mesmo tempo em que se comunica, também se incomunica. E o próprio ato de comunicar-se, transforma-se facilmente em tormento, em desacerto, em erro.

Babel, de acordo com o Gênesis, significa “confusão”. O castigo para a audácia humana. A incomunicabilidade como punição para que o homem se disperse pelo mundo. No entanto, somos testemunhas de que a variedade lingüística não é empecilho para a comunicação. Os amantes, os internautas e os poetas sabem disto muito bem. E o contrário também acontece: pessoas de um mesmo idioma muitas vezes se compreendem mal. Os políticos, as famílias e muitos leitores de poesia conhecem isso de perto.

Se não é o idioma que separa a compreensão da incompreensão, haverá algo que o determine?

O poeta argentino Juan Gelman nasceu em Buenos Aires num contexto em que podemos encontrar muitos elementos de Babel: seus pais, judeus ucranianos, falavam russo, assim como o seu irmão mais velho que lia poemas de Vladímir Maiakovski no original para ele. Mas foi em castelhano portenho que Juan aprendeu a sentir e a expressar sua subjetividade. Tanto que hoje é considerado um dos poetas mais importantes do seu país e de sua língua em ambos os lados do Atlântico. Na entrevista incluída ao final do livro Com/posições, Gelman afirmou, citando Wilde, que “um mapa-múndi que não incluísse o país da utopia não valeria a pena ser visto”. Mas também afirmava que, em linguagem poética, essa utopia só merece aparecer quando ela coincide com a situação do coração.

Parece que desde sempre, a situação do coração de Gelman coincidiu com a “terna revolução”. Mas não apenas: o amor e a infância sempre estiveram presentes numa espécie de concomitância amorosa. Mas em 1976 dá-se o início da ditadura militar na Argentina. Intelectuais e artistas se unem para fazer frente ao governo autoritário. Pouco a pouco começam a desaparecer pessoas queridas. É um clima de incompreensão. O próprio poeta, depois de viver em diversos tipos de clandestinidade, se vê numa enrascada: é urgente sua saída do país. Mas ao sair, acaba por perder o filho e a nora grávida – raptados e assassinados pelos militares que estão no poder. E passa a um exílio que talvez dure até hoje. “É do infinito que estamos exilados”, diz Gelman em um de seus poemas.

Neste exílio, Gelman se vê obrigado a conviver com outros idiomas, pois passa a viver na Itália, na França e outros países da Europa. Apesar do clima de incompreensão (ou talvez por causa dele mesmo), continua escrevendo poesia. Ele diz: “Fomos carregando a derrota nas costas, e ela tem um peso enorme. Eu carregava sentimentos que exigiam de mim um determinado tipo de expressão, uma linguagem contundente, mais violenta, e não a encontrava. Além de exilado, eu estava proibido em meu próprio país, impedido de chegar ao público com o qual eu buscava o diálogo, ainda que à distância. E a necessidade de escrever aumentava, tornava-se desesperadora”.

Nesse contexto, Gelman publicou alguns de seus livros mais pungentes. Suas publicações do final dos anos 1970 e início dos 1980 (as que foram mais tarde reunidas como “Interrupções I” e “Interrupções II”) são o testemunho de uma época e de uma política violentas, que não podem ser esquecidas. Por isso, Juan Gelman passou a ser um dos autores favoritos dos presos políticos. Seus poemas eram sussurrados de cela em cela, decorados, repetidos, furando a censura e o sistema carcerário.

Um dos últimos livros desta fase chama-se “Com/posições” e foi publicado recentemente em português, na tradução de Andityas Soares de Moura. Não é um livro puramente autoral. Trata-se de uma obra híbrida. São traduções de poetas árabes ou judeus que vão dos salmos bíblicos de Davi a cantores da Espanha medieval. Mas os autores ali presentes são quase heterônimos. Recriações de vivências antigas, somadas às idiossincrasias e inventividades do tradutor-autor.

Os poemas de “Com/posições” são feitos de dor e de desespero. Mas principalmente: falas de homens exilados, repletas de ternuras. Palavras de homens que se negam a aceitar uma situação de mera vítima. Testemunhos da passagem de Juan a um mundo sem ingenuidades. Mas é justamente aí que Gelman subverte: seus poemas mais violentos estão repletos de uma ternura que beira uma certa inocência pungente: “me escorraçaram do palácio/não me importei/me desterraram de minha terra/caminhei pela terra/me deportaram de minha língua/ela me acompanhou/me separaste de ti/e os meus ossos se apagam/chamas vivas me abrasam/estou expulso de mim”.

No texto que abre a obra, Gelman diz: “Traduzir é inumano. Nenhuma palavra ou rosto se deixa traduzir”. Porém, Com/posições não deixa de ser um livro de traduções. Curioso é o fato de 20 anos depois um outro poeta de outro país e outra língua vir a se interessar por este livro e traduzi-lo. O propósito de Andityas Soares de Moura, no entanto, já é bem distinto: trata-se de uma obra que dialoga diretamente com a sua poética pessoal. De certa forma, ali também estão suas próprias idiossincrasias em forma de identificação e estas se manifestam em alta voltagem dentro da tradução. Traduzir poesia (isso é consenso entre os tradutores) é um modo de ler.

Poemas árabes e hebraicos traduzidos para o espanhol e estes por sua vez traduzidos para o português. Pedaços de um mundo caído, conflitos entre ocidente e oriente, urgência de traduções, incompreensões dentro ou fora da própria língua. Elementos que nos remetem o tempo todo à atualidade. Difícil não pensar em Babel. Afinal, o relato bíblico da torre desfeita por um deus ciumento situa a cena num lugar que é hoje conhecido como Iraque, região que nunca cessou de viver em conflito e que está se tornando colônia de uma grande potência. O novo conflito gira em torno da história de um prédio gigantesco e de uma incompreensão deliberada. Mas hoje não podemos mais recorrer ao Deus dos relatos antigos: não temos mais a graça divina para nos refugiarmos. A incomunicabilidade não é uma falta, mas uma presença. Ela é fruto de um não querer entender ou não querer se fazer compreendido. No entanto, comunicamos. As ferramentas da reconciliação podem estar em nossas próprias mãos. Como afirma o poeta, ainda uma vez, o que houve com a Torre de Babel foi isto: “Não discórdia essencial, mas ciência parcial da palavra”.

texto publicado originalmente no

www.salamalandro.redezero.org

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010

Blake por Willer

Canções da Inocência e da Experiência de William Blake [tradução, prefácio e notas de Mário Alves Coutinho e Leonardo Gonçalves. Editora Crisálida. Belo Horizonte. 2005]

por Claudio Willer

Desde o pioneiro Escritos de William Blake, preparado por Alberto Marsicano para a L&PM, apareceram outras edições brasileiras de sua obra. Mas ainda é pouco, diante da riqueza e complexidade desse poeta-profeta, messiânico, arcaico, e ao mesmo tempo atual, um precursor do Romantismo que passou a ser efetivamente lido a partir do Simbolismo. Por isso, é oportuna esta tradução dos seus Songs, ocasião para leitura ou releitura do Tigre e tantas outras de suas peças famosas.

Discípulo notório de Swedenborg e Jacob Boehme, Blake acrescentou-lhes um panteísmo e uma visão pagã de mundo. Para Elaine Pagels, em seu livro sobre evangelhos gnósticos, William Blake, observando esses retratos distintos de Jesus que aparecem no Novo Testamento, tomou o partido daquele que os gnósticos preferiam, no lugar da “visão de Cristo que vêem todos os homens”. Em apoio, cita trechos de The Everlasting Gospel, com sua relativização da percepção do Cristo:

Ambos lemos a Bíblia noite e dia,

Mas tu lês negro onde eu leio branco.

Mas Blake foi, mais que gnóstico, um criador de mitologias pessoais. Povoou o universo de divindades. Todas, é claro, alegorias. Demiurgos ou arcontes não faltam, em sua crítica à religião patriarcal. Um deles é Nobodaddy, o Pai-Ninguém, chamado de Pai do Ciúme que, silencioso e invisível, se esconde entre as nuvens, e cujas palavras e leis, interditando o fruto proibido, são escuridão e obscuridade. (cito da edição da The Oxford University Press dos poemas de Blake – tradução minha) Outro, Urizen, homófono de Your reason, You reason, ou Our reason. Em O Livro de Urizen, é o Demônio que engendrou a Eternidade descrita como Estranha, estéril, escura e execrável.

É como se O Livro de Urizen fosse uma combinação do Gênesis com o Apocalipse, na descrição dos embates do ensandecido Urizen com outros princípios criadores, o Eterno Profeta e Los, divindade primeira, derrotada, não antes de gerar Orc, o ser humano, de Enitharmon. Urizen por sua vez engendra contínuas aberrações: Thirel, Utha, Godna, Fuzon. Do pranto de Urizen nasce uma rede de lágrimas, a Rede da Religião, que por sua vez gera o esquecimento, a separação entre a esfera humana e divina. A visão de mundo desse poema é terrível:

a vida transcorre sob a égide da morte:

O Boi geme no matadouro

O cão no frio umbral.

(O Livro de Urizen foi traduzido por Alberto Marsicano em Escritos de William Blake, L&PM). Há mais personagens equivalentes aos arcontes do gnosticismo. Por exemplo, em Milton: Tudo tem seu Guardião, cada Momento, Minuto, Hora, Dia, Mês & Ano. […] Os Guardiões são Anjos da Providência em perpétua Vigília. E, em uma proliferação apocalíptica, em The Book of Los e The Four Zoas, entre outros de seus livros.

Contudo, há um limite para a associação do gnosticismo pessimista a Blake; e esse limite é traçado por aquela parte da sua obra que o tornou um autor cultuado por místicos modernos, pelos beat e pela contracultura: O Casamento do Céu e do Inferno, as Canções da Inocência e Experiência e um de seus textos especificamente teológicos, All Religions are One. Nelas, proclama a alegria de viver. Expressa a crença em uma síntese – o casamento do céu e do inferno, a reconciliação de Deus e Satanás, da razão e do prazer – através da experiência poética. Declara expressamente o monismo ao afirmar a unidade de corpo e espírito: o Corpo ou Forma Exterior do Homem é derivado do Gênio Poético, em All Religions are One. Argumenta na direção contrária à negação gnóstica do corpo, nas passagens famosas de O Casamento do Céu e do Inferno: Energia é a única força vital e emana do Corpo. A Razão é a fronteira ou o perímetro circunférico da Energia./ Energia é a Eterna Delícia. Panteísta, em O Casamento do Céu e do Inferno celebrou o mundo como coisa sagrada, e não como criação equivocada de um demiurgo rancoroso. Adamita, proclamou a inocência original da Humanidade e, ainda, a regência do mundo e da própria religião pelo Gênio Poético, equivalente ao Espírito da Profecia e ao pneuma, à energia primeira.

Uma interpretação para essa aparente oscilação em Blake, de um gnosticismo pessimista para um panteísmo otimista, pode ser dada à luz do seu pensamento político. Nesta nova edição brasileira das Canções, seus tradutores e prefaciadores, Mário Alves Coutinho e Leonardo Gonçalves, acentuam essa dimensão política e sugerem o Blake repórter, pela crítica social expressa em poemas como aqueles sobre os meninos limpadores de chaminés, explorados por seus empregadores: Ingênuo, místico, romântico (Blake é tido como um dos precursores do Romantismo): não seria mais apropriado dizer que Blake era um observador (talvez um repórter) extremamente realista, testemunhando e anotando as conseqüências e práticas da revolução industrial? Não seria ele, ao contrário de um louco, um narrador extremamente confiável dos horrores da implantação do capitalismo no primeiro país capitalista, a Inglaterra?

Por isso, afirmam, Blake …realizou poesia de altíssimo nível, mas foi também um magnífico repórter e historiador de sua importantíssima época histórica. Todas as mudanças, horrores e belezas estão lá registradas. […] Além do mais, Blake foi um ardente republicano, apoiando as revoluções francesa e americana (foi processado por seus “escritos sediciosos”, mas não chegou a ser penalizado devido a eles): na verdade, seu comportamento era anarquista e revolucionário, e confrontou em quase todos os momentos e quase todas as circunstâncias o crescente império inglês, como mostra David E. Erdman em Blake, Prophet Against Empire.

Ainda observam que… Seus escritos [de Blake] são anteriores a qualquer ideologia surgida na modernidade (anarquismo, socialismo, comunismo), seus livros proféticos têm muito a ver com aqueles deixados pelos profetas do Velho Testamento, que lutavam e esbravejavam contra a corrupção dos costumes do povo.

De fato, Blake precede, cronologicamente, até mesmo fundadores do socialismo utópico como Godwin e Fourier. Portanto, faltando-lhe um vocabulário propriamente político, de doutrinas que viram a ser formuladas ou que ainda estavam em preparação, utilizou categorias teológicas para fazer crítica social. Politizou liricamente o gnosticismo e o hermetismo, e os projetou na descrição da realidade que o cercava. Tomou emprestadas categorias e vocabulário dessas doutrinas, para descrever o mundo.

Por isso, foi simultaneamente arcaico, homem de seu tempo e inovador. Canções da Inocência e da Experiência é onde se encontram essas três dimensões. Pela qualidade da tradução e da edição, o leitor terá uma boa oportunidade para acompanhar o percurso desse repórter místico, e perceber o alcance e atualidade da sua rebeldia e aguda sensibilidade.

publicado originalmente na revista agulha #46