segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

O início do fim do gene

Resenha: Evelyn Fox Keller. "O século do gene". Tradução de Nelson Vaz. Belo Horizonte: Crisálida, 2002. 208 pgs.

"Evelyn Keller tem a habilidade perturbadora de te fazer pensar de novo, do princípio, sobre coisas que você pensava já ter entendido." Com essa afirmação, o geneticista norte-americano Richard Lewontin, da Universidade de Harvard e um dos melhores especialistas em genética de populações, resume a importância do livro escrito por Keller, uma professora de história e filosofia do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT) e também uma cientista. No Brasil, o livro foi muito bem traduzido e prefaciado por Nelson Vaz.
O livro começa com a origem da palavra gene, uma história pouco conhecida, mas muito importante pelas lições de filosofia da ciência nela contidas. Gene, palavra criada em 1909 pelo botânico e geneticista dinamarquês WilheIm johannsen (18571927), veio substituir as ‘gêmuIas’, unidades da hereditariedade criadas pelo naturalista inglês Charles Darwin (1809-1882), adotadas no lugar dos ‘determinantes’ criados pelo biólogo alemão August Weismann (1834-1914), que, por sua vez, substituíram os ‘pangenes’ propostos pelo geneticista holandês Hugo de Vries (1848-1935).
Todas essas palavras estão ligadas de alguma forma a teorias da hereditariedade preformacionistas. Johannsen sabia que a teoria do preformacionismo estava errada. A palavra gene tinha a grande vantagem de não estar associada a qualquer teoria ou hipótese de hereditariedade. Com essa nova palavra, evitava-se o preconceito e assim abria-se a possibilidade do avanço do conhecimento científico nessa área.
Gene é a palavra que abre a possibilidade para uma revolução – revolução no sentido utilizado pelo filósofo norte-americano Thomas Kuhn (1922-1996), em que novas premissas (paradigmas ou teorias) requerem a modificação das antigas teorias e a reavaliação dos fatos conhecidos. Essa não é uma mudança fácil ou simples. A ela se opõe a comunidade científica estabelecida, pois são os integrantes dessa comunidade os criadores das teorias vigentes a serem testadas, até que apresentem fraquezas reconhecidas pelos cientistas.
A obra de Keller é um magnífico livro de história da biologia do século 20 em apenas quatro capítulos. A contribuição mais importante é a visão crítica, Iastreada em fatos concretos, do determinismo genético. A idéia de que as características dos seres vivos são determinadas por unidades hereditárias chamadas genes (determinismo genético) é demolida elegantemente, assim como o conceito de programa genético. Richard Lewontin critica o determinismo genético afirmando ser ele uma espécie de preformacionismo moderno. Sua postura radical encontra, de certa forma, amparo factual neste livro. O ‘gene’ das leis de Mendel existe, sem dúvida, mas é um tipo raro de gene, sempre que presente se expressa fenotipicamente da mesma maneira. Os genes mais freqüentes são aqueles de penetrância incompleta e expressividade variável.
No momento em que as técnicas moleculares de análise de DNA são de uso generalizado na maioria dos laboratórios e no momento em que é divulgada a seqüência de nucleotídeos do genoma humano, com promessas de grande avanço na área da genética, é oportuna e necessária a leitura da obra de Evelyn Keller. Este magnífico livro nos mostra os limites da análise genética e a inevitabilidade de olhar, além do gene, a célula, o organismo e seu ambiente, isto é, a complexidade.
As palavras, em certo sentido, são como os seres vivos, nascem em um dado momento, no qual o seu significado é único, mas com o passar do tempo acumulam outros significados, a ponto de obrigar os escritores a usar a palavra seguida de um ‘senso fulano’. Quando a confusão reina absoluta, é melhor que essa palavra morra, já que por ter tantos significados não significa nada.
Tenho recomendado a leitura desta obra a meus alunos e colegas. Para minha surpresa, recebi recentemente do biólogo Rogério Parentoni, do Departamento de Ecologia, da Universidade Federal de Minas Gerais, o livro O citoplasina e o núcleo no desenvolvimento do hereditariedade. O conteúdo vem resumido em três tópicos: (1) O gene-partícula não existe: (2) O cromossomo funciona como um todo; (3) O citoplasma desempenha papel mais importante do que o núcleo nos tenômenos hereditários. Essas afirmações, defendidas hoje por Lewontin e Keller, entre outros, foram propostas em 1941 por Salvador de Toledo Piza Júnior, professor de zoologia e anatomia comparada da Universidade de São Paulo. Na época, suas idéias foram consideradas extravagantes. Hoje, elas abrem novos caminhos, mas ainda é tempo de homenagear o professor Toledo Piza, o mais brilhante citogeneticista brasileiro.

por Ricardo Iglesias Rios

Instituto de Biologia, Universidade Federal do Rio de Janeiro
publicado na Revista Ciência Hoje, maio de 2004.

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