sexta-feira, 12 de fevereiro de 2010


A ciência parcial da palavra


por Leonardo Gonçalves


É possível que nunca o tema da Torre de Babel tenha surgido com tanta força como na atualidade. Vivemos num mundo onde as fronteiras não impedem o contato entre pessoas de diferentes nações e idiomas. A tecnologia digital nos possibilita uma aproximação que nenhum fabricante de lentes ou telefones jamais pôde supor. Essa proximidade tem algo de Babel, pois ao mesmo tempo em que se comunica, também se incomunica. E o próprio ato de comunicar-se, transforma-se facilmente em tormento, em desacerto, em erro.

Babel, de acordo com o Gênesis, significa “confusão”. O castigo para a audácia humana. A incomunicabilidade como punição para que o homem se disperse pelo mundo. No entanto, somos testemunhas de que a variedade lingüística não é empecilho para a comunicação. Os amantes, os internautas e os poetas sabem disto muito bem. E o contrário também acontece: pessoas de um mesmo idioma muitas vezes se compreendem mal. Os políticos, as famílias e muitos leitores de poesia conhecem isso de perto.

Se não é o idioma que separa a compreensão da incompreensão, haverá algo que o determine?

O poeta argentino Juan Gelman nasceu em Buenos Aires num contexto em que podemos encontrar muitos elementos de Babel: seus pais, judeus ucranianos, falavam russo, assim como o seu irmão mais velho que lia poemas de Vladímir Maiakovski no original para ele. Mas foi em castelhano portenho que Juan aprendeu a sentir e a expressar sua subjetividade. Tanto que hoje é considerado um dos poetas mais importantes do seu país e de sua língua em ambos os lados do Atlântico. Na entrevista incluída ao final do livro Com/posições, Gelman afirmou, citando Wilde, que “um mapa-múndi que não incluísse o país da utopia não valeria a pena ser visto”. Mas também afirmava que, em linguagem poética, essa utopia só merece aparecer quando ela coincide com a situação do coração.

Parece que desde sempre, a situação do coração de Gelman coincidiu com a “terna revolução”. Mas não apenas: o amor e a infância sempre estiveram presentes numa espécie de concomitância amorosa. Mas em 1976 dá-se o início da ditadura militar na Argentina. Intelectuais e artistas se unem para fazer frente ao governo autoritário. Pouco a pouco começam a desaparecer pessoas queridas. É um clima de incompreensão. O próprio poeta, depois de viver em diversos tipos de clandestinidade, se vê numa enrascada: é urgente sua saída do país. Mas ao sair, acaba por perder o filho e a nora grávida – raptados e assassinados pelos militares que estão no poder. E passa a um exílio que talvez dure até hoje. “É do infinito que estamos exilados”, diz Gelman em um de seus poemas.

Neste exílio, Gelman se vê obrigado a conviver com outros idiomas, pois passa a viver na Itália, na França e outros países da Europa. Apesar do clima de incompreensão (ou talvez por causa dele mesmo), continua escrevendo poesia. Ele diz: “Fomos carregando a derrota nas costas, e ela tem um peso enorme. Eu carregava sentimentos que exigiam de mim um determinado tipo de expressão, uma linguagem contundente, mais violenta, e não a encontrava. Além de exilado, eu estava proibido em meu próprio país, impedido de chegar ao público com o qual eu buscava o diálogo, ainda que à distância. E a necessidade de escrever aumentava, tornava-se desesperadora”.

Nesse contexto, Gelman publicou alguns de seus livros mais pungentes. Suas publicações do final dos anos 1970 e início dos 1980 (as que foram mais tarde reunidas como “Interrupções I” e “Interrupções II”) são o testemunho de uma época e de uma política violentas, que não podem ser esquecidas. Por isso, Juan Gelman passou a ser um dos autores favoritos dos presos políticos. Seus poemas eram sussurrados de cela em cela, decorados, repetidos, furando a censura e o sistema carcerário.

Um dos últimos livros desta fase chama-se “Com/posições” e foi publicado recentemente em português, na tradução de Andityas Soares de Moura. Não é um livro puramente autoral. Trata-se de uma obra híbrida. São traduções de poetas árabes ou judeus que vão dos salmos bíblicos de Davi a cantores da Espanha medieval. Mas os autores ali presentes são quase heterônimos. Recriações de vivências antigas, somadas às idiossincrasias e inventividades do tradutor-autor.

Os poemas de “Com/posições” são feitos de dor e de desespero. Mas principalmente: falas de homens exilados, repletas de ternuras. Palavras de homens que se negam a aceitar uma situação de mera vítima. Testemunhos da passagem de Juan a um mundo sem ingenuidades. Mas é justamente aí que Gelman subverte: seus poemas mais violentos estão repletos de uma ternura que beira uma certa inocência pungente: “me escorraçaram do palácio/não me importei/me desterraram de minha terra/caminhei pela terra/me deportaram de minha língua/ela me acompanhou/me separaste de ti/e os meus ossos se apagam/chamas vivas me abrasam/estou expulso de mim”.

No texto que abre a obra, Gelman diz: “Traduzir é inumano. Nenhuma palavra ou rosto se deixa traduzir”. Porém, Com/posições não deixa de ser um livro de traduções. Curioso é o fato de 20 anos depois um outro poeta de outro país e outra língua vir a se interessar por este livro e traduzi-lo. O propósito de Andityas Soares de Moura, no entanto, já é bem distinto: trata-se de uma obra que dialoga diretamente com a sua poética pessoal. De certa forma, ali também estão suas próprias idiossincrasias em forma de identificação e estas se manifestam em alta voltagem dentro da tradução. Traduzir poesia (isso é consenso entre os tradutores) é um modo de ler.

Poemas árabes e hebraicos traduzidos para o espanhol e estes por sua vez traduzidos para o português. Pedaços de um mundo caído, conflitos entre ocidente e oriente, urgência de traduções, incompreensões dentro ou fora da própria língua. Elementos que nos remetem o tempo todo à atualidade. Difícil não pensar em Babel. Afinal, o relato bíblico da torre desfeita por um deus ciumento situa a cena num lugar que é hoje conhecido como Iraque, região que nunca cessou de viver em conflito e que está se tornando colônia de uma grande potência. O novo conflito gira em torno da história de um prédio gigantesco e de uma incompreensão deliberada. Mas hoje não podemos mais recorrer ao Deus dos relatos antigos: não temos mais a graça divina para nos refugiarmos. A incomunicabilidade não é uma falta, mas uma presença. Ela é fruto de um não querer entender ou não querer se fazer compreendido. No entanto, comunicamos. As ferramentas da reconciliação podem estar em nossas próprias mãos. Como afirma o poeta, ainda uma vez, o que houve com a Torre de Babel foi isto: “Não discórdia essencial, mas ciência parcial da palavra”.

texto publicado originalmente no

www.salamalandro.redezero.org

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