segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

Os donos do poder nas Minas Gerais: comentários sobre “O segredo de Minas", de Amilcar Vianna Martins Filho

“O segredo de Minas: a origem do estilo mineiro de fazer política – 1889-1930” - Editora Crisálida

por Andrey Zanetti

Devo reconhecer que são poucos os trabalhos surpreendentemente bons quando falamos em pensamento brasileiro, ainda mais quando se trata de estudos regionais. Os estudiosos ufanam as regiões mais ricas pela sua grandeza; das mais pobres, buscam no passado sua história de glórias. Mas são poucos os estudos que se pode reconhecer como esforço intelectual, exercício de entendimento dessa complexa realidade nacional que se comunica com, não menos complexa, realidades regionais. Ler o trabalho de Amilcar Vianna Martins Filho é deparar com um exemplo de texto limpo e claro, um excelente modelo de como se escrever uma tese seguindo o bom manual acadêmico, sem pirotecnias ou devaneios, infelizmente tão comuns hoje.
Resenhar o livro de Martins Filho é um trabalho que envolve mais do que simplesmente tecer comentários bajuladores; exige destacar os segredos presentes nas possíveis interpretações de seu discurso. Dessa forma, proponho para esse exercício seguir alguns caminhos que, por não terem uma ordem exata de importância, são apresentados de forma aleatória e dentro de algumas conveniências.
Primeiro, deve-se destacar a qualidade estilística do discurso. É um trabalho conciso, claro, bem ao estilo de narrativa acadêmica americana. O argumento é exposto de forma clara, sem qualquer dúvida. O que para alguns leitores poderia parecer falta de criatividade ou simplismo, revela-se um refinamento do trabalho. A aparente simplicidade é a estratégia escolhida pelo autor na exposição de seus argumentos, em que a clareza torna muito difícil refutá-los. Cada capítulo inicia apresentando uma hipótese, as teses em contrário, seu argumento, análises favoráveis e um rico material que servirá como ilustração comprobatória de seus argumentos exposto de forma harmoniosa, algo muito difícil, mas que o autor provou não ser impossível.
Outro caminho para interpretar o trabalho de Martins Filho é identificar a linhagem acadêmica. O livro é uma versão de sua tese de doutorado, defendida nos EUA e sob orientação de Joseph L. Love, que é autor de um dos livros que compõe uma trilogia de estudos de brasilianistas americanos, publicados pela editora Paz e Terra na década de 1980: John D. Wirth (O Fiel da Balança: Minas Gerais na Federação Brasileira 1889-1937), Joseph L. Love ( A Locomotiva: São Paulo na Federação Brasileira 1889-1937) e Robert M. Levine (A Velha Usina: Pernambuco na Federação Brasileira 1889-1937). Assim, Amilcar Martins se liga a essa linhagem dos brasilianistas americanos e aos vários estudos regionais por eles desenvolvidos, com o mesmo rigor metodológico e a mesma riqueza de dados estatísticos. Eu poderia ficar por aqui em minha análise, discorrendo sobre os pontos positivos e negativos, e até a minha relativa desconfiança em relação às qualidades gerais dos trabalhos dos brasilianistas americanos, mas é mais importante desenvolver um terceiro caminho de interpretação.
O trabalho de Martins Filho se destaca por continuar uma linhagem de estudos sobre o Pensamento Brasileiro em uma tradição weberiana. Mais especificamente, o seu trabalho pode ser pensado como uma extensão de um estudo já tomado como um clássico, a obra Os donos do poder de Raymundo Faoro, inegavelmente de grande fôlego e de competência intelectual. Boris Fausto, no prefácio de O segredo de Minas, já destaca que o autor sustenta a interpretação do caráter patrimonialista da formação histórica do Brasil (p. XIV). A noção de patrimonialismo, absorvida da obra de Faoro, funcionará como interpretação teórica do modelo da representação de interesses. O legado de Faoro fica bem claro quando Martins Filho afirma: “Nesse estudo, procurarei demonstrar que o desenvolvimento histórico de Minas, tanto na esfera econômica quanto na política, marcado que foi pela presença precoce de forte aparato estatal português, dificultou a articulação de interesses privados e levou ao estabelecimento de um sistema político do tipo patrimonial. Particularmente a partir da crise do setor cafeeiro que ocorreu nos últimos anos do século XIX, os principais processos e articulações da política mineira tiveram como foco de referência o patrimonialismo político. Em tal perspectiva interpretativa, uma hipótese central deste estudo ode ser assim formulado: a unificação da política mineira resultou, primordialmente, de amplo e abrangente processo de cooptação política de todos os grupos e facções que tinham algum poder de pressão dentro do Estado. Nesse processo, a representação consistente de interesses econômicos não desempenhou papel especial.” (p. 07).
O caráter patrimonial do Estado é definido pela indistinção da riqueza particular pública, argumento que permitiu a Faoro desfechar uma série de críticas, muito especialmente aos historiadores ligados ao marxismo ortodoxo, quando ataca a análise do “modo de produção” e os estudos sobre os “restos feudais” nos países subdesenvolvidos. Faoro deixa claro ser contrário à tese de retrocesso feudal no processo colonial. Para ele, o processo colonial é um capítulo da história do comércio europeu. Afirma, contra o argumento de feudalização do Brasil, que a empresa de plantação teve nítido cunho capitalista – dentro do capitalismo mercantil e politicamente orientado do século XVI português. Ainda em Os donos do poder, Faoro desenvolve seu argumento até a República, apontando o desenvolvimento das instituições como objeto dos interesses privados em detrimento de suas obrigações públicas, extensão dos primeiros capítulos de nossa colonização. Negando a máxima do marxismo de que o Estado é aparelho da burguesia (entende-se a burguesia econômica), demonstra que se formou no Brasil uma elite não necessariamente econômica – quer dizer ligada diretamente aos interesses econômicos –, mas que se profissionaliza em defesa de seus interesses.
Martins Filho, com menos fôlego, mas não com menos qualidade, irá seguir esse argumento. Primeira questão que levanta: diferente de São Paulo, a expansão do café, absorvida nas últimas décadas do século XIX não teve impacto direto na ascensão do Estado de Minas Gerais na política nacional. Minas só veio a se tornar ator político relevante no âmbito federal durante a grave crise do mercado internacional do café, na segunda década republicana (p. 02).
A posição da historiografia em relação à política do café-com-leite é de explicar a política “doméstica” de Minas a partir da tese da representação de interesses do setor cafeeiro que, supostamente, seria dominante no Estado. O estudo de Martins Filho é contrário às interpretações da historiografia tradicional: a política mineira não representava o setor cafeeiro ou qualquer outro interesse econômico específico do Estado, tornando possível construir uma bem sucedida coalizão no âmbito da política doméstica e, também, desempenhar papel estratégico na política nacional. Demonstra que na reorganização da política mineira e na negociação da aliança com São Paulo, a alegada força política dos cafeicultores mineiros está mais na esfera do mito do que no mundo dos fatos históricos (p. 06).
E será exatamente o que fará em todo o livro. Uma das lições mais simples e muitas vezes esquecidas, o discurso acadêmico é o de convencer o leitor da veracidade de uma hipótese. As ciências humanas têm a diferença, em relação às ciências naturais, de precisar exercitar muito mais a imaginação e a riqueza narrativa. As ciências naturais se orientam por “evidências que são apresentadas pela realidade e que podem ser testadas, refeitas e reproduzidas infinitamente”. Cabe a nós produzir imagens, encontrar vestígios de provas e ser julgados pelos nossos pares. Martins Filho realiza esse trabalho com perfeição e bem cercado de imagens. A grande massa de dados estatísticos dialoga perfeitamente como o texto, buscando responder a todas as questões que se colocou.
Finaliza seu trabalho afirmando que a chave do sucesso e estabilidade de todo o sistema de política patrimonial do Estado foi a construção de uma coalizão de todos os setores da elite estadual, que obteve legitimidade entre as classes médias e altas por meio de instrumentos clientelísticos de cooptação. Atividade política como fim econômico em si mesmo será a fonte direta e única de renda. Os membros da elite política mineira, por seu caráter não ideológico e pragmático da política, exemplificam o que Max Weber identificou como políticos profissionais, que viviam da política e para a política.
O verdadeiro segredo dos políticos mineiros foi o de primeiro descobrir e, depois, sedutoramente por em prática as virtudes da negociação e da conciliação (MARTINS FILHO, p. 237).
Ler O segredo de Minas foi deparar com uma idéia bem mineira, de que o simples não pode ser nunca “simplório”.
Minha crítica é centrada num fato que o autor e seu prefaciador tentaram explicar, mas ainda resisto em aceitar seus argumentos. A tese de Martins Filho (The white collor republic) foi defendida em 1986. Somente hoje, com o desenvolvimento de tecnologia de comunicação que podemos ter algum acesso facilitado a materiais acadêmicos de qualquer lugar do mundo. Foram precisos 23 anos, e acredito que muita insistência, para que seu estudo se tornasse viável ao público mais geral – insanos que estudam ou curiosos em pensamento brasileiro, Minas Gerais, Primeira República, etc.
Essa distância de pouco mais de duas décadas e sua pouca divulgação acabam levando a alguns erros. Um exemplo pode esclarecer o que quero dizer. O trabalho de Helena Bomeny (Guardiães da razão, 1994), resultado de sua tese de doutorado, faz categórica referência à tese de Martins Filho. Até mais do que isso: ela afirma que Martins Filho acompanha, exaustivamente, o processo de unificação da política interna mineira na primeira década pós-República, onde defende a tese de que é exatamente por não ter representado o interesse cafeeiro, ou especificamente qualquer outro interesse econômico, que a elite política mineira pôde construir uma forte coalizão interna e, ao lado da elite paulista, controlar a política nacional. Vale-se do conceito de patrimonialismo, construção típico-ideal weberiano para caracterizar aquelas situações em que a representação de interesses perde em força a dimensão para os mecanismos que se constroem na órbita do poder central. Bomeny, como se é de se esperar da grande pesquisadora que é, compreende muito bem o trabalho de Martins Filho. Em relação à idéia de mineiridade presente no trabalho de Martins Filho, Bomeny afirma que a sua interpretação se distingue da dele ao vincular a mineiridade à confluência de dois fenômenos históricos e a uma geração de intelectuais: a proclamação da República, a criação de Belo Horizonte, cidade planejada e construída no final do século XIX como nova capital de Minas Gerais, e a primeira geração modernista mineira. A tensão entre anseio cosmopolita e experiência provinciana é o tom da análise que se desenvolve pelos intelectuais da Rua Bahia, sendo a marca do que a autora chama de o duplo em confronto.
Lendo atentamente ambos os trabalhos, vejo mais complementaridade que distinção. Há claramente uma evolução (os historiadores relativistas irão se morder de ódio e me chamar de evolucionista por causa dessa palavra), uma “continuidade-complementar” (para diminuir a raiva de alguns) entre os trabalhos. Uma “continuidade-complementar” com um grande avanço, importante e necessário, em relação ao trabalho de Martins Filho.
Ao ler O segredo de Minas, terminei a última página tendo muito claro que estava em minhas mãos um trabalho digno de ser colocado junto aos clássicos, referência inquestionável para estudiosos do pensamento político e social em Minas Gerais. Mas ele não está limitado a um estudo puramente regionalista, é uma importante obra de referência sobre a Primeira República. Vou além, é uma obra de referência das ciências humanas em geral, e um exemplo a ser seguido. E a melhor forma de dar o devido respeito a um trabalho como o de Martins Filho é exatamente o confrontar com outros materiais. A análise quantitativa séria de seu livro deve ser confrontada com outros dados – quantitativos ou qualitativos – tão sérios quanto. E é exatamente o que realiza Bomeny ao trabalhar com dados qualitativos, dá continuidade, complementa e avança.
O livro de Ângela Alonso (Idéias em movimento, 2002), ao tratar da geração de 1870, segue outro argumento presente no estudo de Martins Filho, de que Minas se diferencia de São Paulo em relação a sua posição política por defender interesses de um Estado com uma economia de exportação local e não voltado ao mercado internacional. Não cabe aqui expor todo o argumento de Alonso, mas destacar que o seu trabalho sobre a política no Brasil e os políticos da Geração de 1870, vai corroborar no trabalho de Martins Filho ao mostrar que há uma permanência de fatores internos que levam ao fortalecimento do modo mineiro de se fazer política.
Estabeleço uma linhagem temporal precária, mas como exercício, sem qualquer perigo de desonra. Faoro e sua monumental obra em 1973. Martins Filho, em 1986, irá dar continuidade-complementar aos Donos do Poder, tratando de um tempo-espaço bem específico, Minas Gerais na Primeira República. Bomeny segue, em 1994, na clareira aberta por Martins Filho.
E aí fica a confusão, o livro é de 2009. Antes tarde do que nunca...

Referências:
ALONSO, Angela. Idéias em movimento: a geração 1870 na crise do Brasil-Império. São Paulo: Paz e Terra, 2002.
BOMENY, Helena. Guardiães da razão: modernistas mineiros. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ/Tempo Brasileiro, 1994.
FAORO, Raymundo. Os Donos do Poder: formação do patronato político brasileiro. 9ª. Ed. São Paulo: Globo, 1991. (2 volumes).
MARTINS FILHO, Amilcar Vianna. O segredo de Minas: a origem do estilo mineiro de fazer política (1889-1930). Trad. Vera Alice Cardoso Silva. Belo Horizonte: Crisálida/ICAM, 2009.


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