sexta-feira, 29 de janeiro de 2010

O segredo de Minas: a origem do estilo mineiro de fazer política


'O Segredo de Minas' ganha finalmente tradução no país
por João Pombo Barile
[jornal O Tempo, em 01/08/2009]

É bastante conhecido o prefácio escrito por Antonio Candido para uma das edições de "Raízes do Brasil", de Sérgio Buarque de Holanda. Nele, o mestre assinala os livros que foram fundamentais para que sua geração pudesse compreender o Brasil.

Segundo o crítico, além do livro de Sérgio, "Casa Grande e Senzala", de Gilberto Freyre, e "Evolução Política do Brasil", de Caio Prado Júnior, poderiam ser considerados como os livros mais importantes para compreendermos nossa "formação" como povo: as três obras fundamentais que, a partir da geração de Candido, serviram de bússola na discussão de nossa identidade nacional.

O prefácio de Candido é do final dos anos 60. E muita água já passou debaixo desta ponte. Muitos outros autores, depois da tríade assinalada por Candido, acabariam entrando na lista de "livros que interpretaram o Brasil". Ninguém que nunca leu Celso Furtado ou Darcy Ribeiro, para ficar em apenas dois nomes, pode dar o seu palpite do que seja ser brasileiro.

Sem medo de errar, considero O Segredo de Minas: A Origem do Estilo Mineiro de Fazer Política (1889-1930), de Amilcar Vianna Martins Filho, um dos livros que a partir de agora terá que necessariamente ser lido e citado para quem se interessa pela discussão de nossa formação.

Com a versão para o português da tese de doutorado de Amilcar, defendida em 1986, na Universidade de Illinois, nos Estados Unidos, o leitor agora terá que reservar um espaço em sua estante para uma obra que deve ficar ao lado de autores como Sérgio, Gilberto, Caio, Furtado...

Dois temas

Conforme assinala José Murilo de Carvalho, professor titular de história da UFRJ, o livro de Amilcar enfrenta dois temas da historiografia que ainda estão longe de ser resolvidos empírica e teoricamente.

"O primeiro é mais tipicamente mineiro. Trata-se da natureza da economia do Estado ao final do século XIX e primeiras décadas do século XX", explica o historiador. "Contra a visão dominante que afirmava a preeminência do café, o autor documenta a crise dessa cultura e seu peso relativamente reduzido na economia mineira."

Já o segundo tema, sempre segundo José Murilo, teria um alcance mais amplo e trataria da relação entre a economia cafeeira e a política.

Enfrentando um lugar-comum, que sempre afirmou que a política de nosso Estado se caracterizaria pela representação dos interesses dos cafeicultores, Amilcar afirma que o surgimento do estilo mineiro de governar é fruto exatamente da crise cafeeira e da fragmentação da economia do estado. "O estilo mineiro de fazer política", escreve José Murilo, "conhecido nacionalmente como capacidade de articulação e negociação, seria fruto exatamente da ausência de qualquer hegemonia econômica no Estado e da presença de uma elite capaz de costurar divergências e usar a máquina de governo como dominação e cooptação políticas".

Escrito com rigor e precisão, o livro de Amilcar Vianna Martins combate o "achômetro" que tanto mal faz para as ciências sociais.

terça-feira, 26 de janeiro de 2010

Sangue mineiro na arte de fazer cinema II

Por Ailton Magioli

À exceção de Humberto Mauro, que se projetou nacionalmente, nenhum outro profissional teria exercido influência sobre a criação das novas gerações de cineastas mineiros. “E, mesmo assim, a exibição dos filmes de Mauro ainda continua restrita”, critica Paulo Augusto Gomes, de 59 anos, autor de Pioneiros do cinema em Minas Gerais (Editora Crisálida), que será lançado hoje [08/12/2008], em noite de autógrafos na livraria do Palácio das Artes. Atores, produtores e, sobretudo, diretores como Paulo são os protagonistas da obra, que chega para suprir a carência de literatura no setor. “Apesar de Igino Bonfioli ter dois longas-metragens preservados pela Escola de Belas Artes da UFMG, eles raramente são exibidos. Assim como alguns curtas de Artistides Junqueira e de Luiz Renato Brescia. A obra desses pioneiros, infelizmente, está praticamente perdida”, acrescenta Paulo Augusto, lembrando que Brescia foi o último dos realizadores da geração mineira que antecedeu a chegada do som na sétima arte.

Produto de uma longa e dedicada pesquisa do diretor de Idolatrada (1983) e O circo das qualidades humanas (2000, em co-direção), o livro de Paulo Augusto Gomes coloca os pioneiros em seu devido lugar na história da cinematografia mineira, destacando vida e obra de cada um, com introdução, entrevistas, imagens e conclusão. A análise crítica da produção, avisa o autor, fica para uma próxima publicação. Belo Horizonte ainda não havia ocupado o posto de nova capital de Minas Gerais quando o cinema chegou ao estado, via Juiz de Fora. Menos de dois anos após a famosa sessão que Louis Lumière realizou no Grand Café, de Paris, em dezembro de 1895, a cidade da Zona da Mata, conforme destaca o livro, tornava-se a primeira do estado a exibir o Cinematógrafo Lumière, em julho de 1987. Inaugurada a 12 de dezembro daquele ano, a capital mineira teve a sua primeira sessão de cinema em julho do ano seguinte.

Com a disseminação da novidade, os realizadores se espalharam por praticamente todo o estado, produzindo cinema desde o Sul (Guaranésia e Pouso Alegre) até a Zona da Mata (Cataguases e Juiz de Fora), passando pela região Central (Barbacena e Belo Horizonte). A presença maciça de imigrantes no meio – italianos, em maioria – segundo Paulo Augusto, se deve ao preconceito das famílias tradicionais, que não queriam ter um dos seus envolvidos com uma atividade marginalizada até então. Uma constatação, no entanto, o autor do livro não deixa de apontar: ainda se produz muito pouco cinema em Minas Gerais. “Fazer cinema é muito caro”, justifica Paulo Augusto Gomes, salientando que na época dos pioneiros a produção era mais barata. “Na entrevista que o José Silva me deu, ele diz que comprava negativo por tostões, que o positivo custava um pouquinho mais caro. Mas que nada era proibitivo”, recorda.

CHEGADA DO SOM

“O que alterou tudo foi a chegada do som, no final dos anos 1920. No Brasil inteiro, já que não havia justificativa econômica para montar laboratórios de som aqui em Minas ou no Rio Grande do Sul, mas apenas no Rio e São Paulo”, esclarece Paulo Augusto. Isso complicou terrivelmente a vida das pessoas ligadas ao cinema. “Francisco de Almeida Fleming, de Pouso Alegre, por exemplo, não sabia que Carlos Masotti filmava em Guaranésia, apesar de uma cidade ficar ao lado da outra ”, justifica Paulo Augusto. De acordo com ele, o primeiro profissional de cinema a voltar suas lentes para Minas Gerais foi o fotógrafo Raimundo Alves Pinto, de origem desconhecida, no início dos anos 1900. “De gente do estado propriamente dita, o primeiro foi Aristides Junqueira, nascido em Ouro Preto, que fez o curta-metragem Reminiscências, de 1909.”

Paulo Augusto destaca o espírito empreendedor de Francisco de Almeida Fleming: “Imagina um sujeito que, em 1925, resolve filmar Paulo e Virgínia, de Bernardin de Saint-Pierre e Manon Lescaut, um verdadeiro Romeu e Julieta passado em Madagascar. Como não havia palmeiras em Pouso Alegre, onde fez o filme, ele mandou arrancar 200 delas a mais de 100 quilômetros, transplantando todas para as filmagens.” De José Silva, diretor português radicado em Belo Horizonte, Paulo Augusto salienta o trabalho documental. “Foi o responsável pelos cinejornais da construção de Brasília. Como trabalhou com o Juscelino Kubitschek aqui em Belo Horizonte, foi chamado por ele para fazer os documentários sobre a nova capital federal”. O livro Pioneiros do cinema em Minas Gerais registra ainda a vida e obra de Paulo Benedetti, Igino Bonfioli, Clementino Doti, Carlos Masotti, Humberto Mauro, Pedro Comello, Manoel Talon, José Magalhães, João Carriço e Luiz Renato Brescia.

A idéia do livro surgiu por acaso, na 11ª edição do Festival de Cinema de Brasília, em 1978, quando ele se encontrou com Francisco de Almeida Fleming, homenageado no evento, e fez a longa entrevista reproduzida no livro. Além dos pioneiros então vivos (além de Fleming, José Silva, Clementino Doti, José Magalhães, Luiz Renato Brescia e Humberto Mauro), Paulo Augusto entrevistou colaboradores diretos dos já mortos na época (Aristides Junqueira, Carlos Masotti e Igino Bonfioli), em geral filhos e netos, e pesquisou a vida dos outro quatro profissionais de cinema (Paulo Benedetti, Manoel Talon, João Carriço e Pedro Comello), diante da ausência de colaboradores e familiares com os quais pudesse se encontrar.

Mais comentários sobre Pioneiros do cinema em Minas Gerais em:
http://paje-filmes.blogspot.com/2008/12/ltimas-sobre-os-pioneiros-do-cinema.html

http://paje-filmes.blogspot.com/2008/12/ainda-os-pioneiros-do-cinema-em-minas.html

Sangue mineiro na arte de fazer cinema I


Tomo emprestado o título de Luis Felipe Miranda para reproduzir duas resenhas sobre o livro Pioneiros do cinema em Minas Gerais, a do próprio Luis Miranda [publicada em: http://www.cenacine.com.br/?p=870] e outra assinada por Ailton Magioli [publicada em: http://www.new.divirta-se.uai.com.br/html/sessao_8/2008/12/08/ficha_cinema/id_sessao=8&id_noticia=5726/ficha_cinema.shtml
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Por Luis Felipe Miranda

Fruto de importantes pesquisas históricas realizadas na década de 1970, inclusive, coletando depoimentos de cineastas, artistas, produtores, técnicos e descendentes como filhos e netos dos participantes do Cinema Mudo Mineiro, além de realizar pesquisas em diferentes obras que abordaram os pioneiros. Este é o assunto do livro Pioneiros do Cinema em Minas Gerais. Um ponto muito interessante do Cinema Mineiro é que diferentemente do que ocorreu em outros estados brasileiros e até em outros países, em Minas aconteceram realizações cinematográficas em várias cidades além da capital, Belo Horizonte, como Barbacena, Cataguases, Guaranésia, Juiz de Fora, Pouso Alegre e em outros lugares, onde houve tentativas. Durante algumas décadas em toda América Latina, sempre apareceram pioneiros nascidos na Itália ou descendentes de gentes vindas desse país e de outros lugares da Europa. Em Minas, o mesmo aconteceu, pois mais da metade dos enfocados nesse trabalho tem origem européia. É como se tomássemos a liberdade de imaginar que os referidos estrangeiros têm sangue mineiro, devido a sua total adaptação a nova terra e numa homenagem, pedir emprestado o título de filme de Humberto Mauro, para batizar esta resenha.

O que essa obra cuja apresentação é do cineasta Geraldo Veloso, colega de geração do autor e que nos conta um pouco da personalidade de Paulo Augusto e do belo prefácio de Cunha de Leiradella, da Casa das Letras, Portugal. O livro ficou graficamente bonito e se propõe a examinar a contribuição de cada uma dessas personalidades que se arriscaram numa atividade nova, gente como Junqueira, Benedetti, Bonfioli, Doti, Fleming, Masotti, Mauro, Comello, Talon, Silva, Magalhães, Carriço e Brescia.

O livro seguiu uma ordem cronológica, quando apareceram os primeiros cineastas-operadores: Aristides Junqueira, Paulo Benedetti e Igino Bonfioli, os dois últimos italianos de nascimento que fizeram carreira em nosso cinema, Benedetti nas cidades de Barbacena e Rio Janeiro e Junqueira e Bonfioli, em Belo Horizonte. No final do capítulo Benedetti, aparece referência a Humberto Caetano, cineastas barbacenense, que merecerá maior destaque numa futura edição. Outros enfocados foram o artista amador Clementino Doti ator no primeiro filme ficcional silencioso: Canção da Primavera. Além do cineasta Francisco de Almeida Fleming de Pouso Alegre. O produtor Carlos Masotti de Guaranésia, também italiano de nascimento. Entre eles, o nome de maior destaque da época: Humberto Mauro, que fez carreira como cineasta em Cataguases e no Rio de Janeiro. O técnico Pedro Comello, outro italiano radicado e que filmou em Cataguases. Em Belo Horizonte, o artista-cineasta Manoel Talon e o cineasta José Silva, diretores cada um de um filme de longa-metragem. Silva era português e novidades surgem do quase desconhecido Talon. O produtor ocasional José Magalhães. O produtor de cinejornais que fez história na cidade de Juiz de Fora, João Carriço e o produtor-cineasta Luiz Renato Brescia, que após trabalhar em várias cidades pelo interior mineiro e finalmente se radicou em Belo Horizonte.

O autor Paulo Augusto Gomes (1949) é nascido em Belo Horizonte, cidade onde atua como crítico de cinema de longa atividade, iniciada em 1967, além de cineasta com alguns curtas-metragens no currículo e duas passagens pelo longa-metragem (atualmente prepara nova incursão cinematográfica), além de ser autor em parceria com Mário Alves Coutinho do livro Presença do CEC, 50 Anos de Cinema em Belo Horizonte, publicado em 2001 pela mesma Crisálida Editora. E sua obra, além da valiosa cobertura da fase silenciosa, serve como importante fonte para escrita de uma História do Cinema Mineiro, na qual Paulo Augusto faz parte e talvez seja sério candidato a escrevê-la.



segunda-feira, 25 de janeiro de 2010

Machado de Assis: tradutor ou recriador?


por Adelto Gonçalves (*)

I

Se Machado de Assis (1839-1908) é hoje, com certeza, o autor brasileiro mais discutido e analisado pela academia nacional, além de bastante estudado em universidades estrangeiras, é de lamentar que tenha sido necessário um período de quase quatro décadas para que A juventude de Machado de Assis (1839-1870): ensaio de biografia intelectual (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1971), de Jean-Michel Massa, recebesse uma nova edição, embora as livrarias do País estejam abarrotadas de obras sem a menor importância e de conteúdo duvidoso, o que é um indicador da pujança de nosso mercado editorial – que se equivaleria ao mercado de língua espanhola em termos econômicos --, mas também da indigência cultural à que a população, de um modo geral, está relegada.
Se A juventude de Machado de Assis chega agora em junho de 2009 às livrarias em lançamento da Editora da Universidade Estadual Paulista (Unesp), é bom que o leitor saiba que, em 2008, a Crisálida Livraria e Editora, de Belo Horizonte, deu à estampa o ensaio Machado de Assis tradutor, com tradução do editor Oséias Silas Ferraz, que constitui um complemento à tese de doutoramento que o professor Jean-Michel Massa defendeu em 1969 na Faculdade de Letras da Universidade de Poitiers, na França, e que resultou naquela monumental biografia.
Originalmente, essa tese complementar traz um apêndice com traduções (inéditas) de duas peças por Machado de Assis, “Os burgueses de Paris” e Tributos da mocidade”, que, porém, não constam deste livro impresso. Ao lado de uma terceira peça traduzida, “Forca por forca”, essas duas peças, aliás, compõem Três peças francesas traduzidas por Machado de Assis, com notas de Jean-Michel Massa, que, em lançamento da Crisálida, chega às livrarias juntamente que a segunda edição de A juventude (...). Feliz coincidência.
Organizador de Dispersos de Machado de Assis (1965) e de Bibliographie descriptive, analytique et critique de Machado de Assis (1957-1958) e autor de numerosos artigos e ensaios sobre a produção machadiana, com destaque para “La bibliothèque de Machado de Assis”, em que identifica 718 obras que pertenceram ao acervo particular do escritor, Massa, 79 anos, é um grande estudioso da literatura brasileira dos séculos XIX e XX, com trabalhos sobre Manuel Antônio de Almeida (1831-1861), José de Alencar (1829-1877) e Carlos Drummond de Andrade (1902-1987), do qual traduziu Reunião (1983).
Em parceria com sua mulher, a professora Françoise Massa, também organizou o Dictionnaire Encyclopedique de la Langue Portugaise, do qual já foram publicados três volumes: um sobre a Guiné-Bissau, outro sobre São Tomé e Príncipe e um terceiro sobre Cabo Verde.

II

Apesar de todo esse currículo, o que tornou o nome do professor Massa um pouco mais conhecido entre nós foi que, por meio de suas pesquisas, acabou por provar que Machado de Assis não era o autor de Queda que as mulheres têm para os tolos, como a crítica brasileira, contra todas as evidências, assegurou por muito tempo e até recentemente por desconhecimento da própria obra do estudioso francês, que saiu no Brasil em 1971, mas que hoje constitui livro difícil de encontrar.
Aliás, Machado de Assis nunca disse que era autor de Queda (...), pois na primeira edição da obra no Brasil, em 1861, pela Tipografia de F.de Paula Brito, consta na capa com todas as letras que se trata de “tradução do snr. Machado de Assis”. Mesmo assim, não foram poucos os que insistiram que Machado seria o verdadeiro autor do opúsculo, embora Massa já tivesse localizado o original num antigo catálogo de obras anônimas da Biblioteca Nacional de Paris atribuído ao belga Victor Hénaux.
Se alguma contribuição este historiador literário pode dar a essa discussão depois de ter estudado a fundo as obras de dois poetas setecentistas, é que no século XVIII e, provavelmente, no XIX, não havia ainda a consciência ou o consenso de que a tradução deveria ser o mais fiel possível ao original. Pelo contrário, o comum é que o tradutor tomasse muitas liberdades -- que hoje não seriam admitidas -- em relação ao texto original. Muitas vezes, alterava tanto o original de um poema ou um trecho de prosa que acabava sentindo que fizera outro texto. Outras vezes, anunciava que fizera determinado poema “à imitação de (...)”. Ou seja, inspirava-se num poema que quase sempre seria francês para escrever outro em português.
Manuel Maria de Barbosa du Bocage (1765-1805), por exemplo, traduziu muito do francês – entre outros, Grecourt, Piron, Dorat, Logouvé, Chenier, Bernard, Fontanel, Delille, Castel, segundo José Agostinho de Macedo (1761-1831) -- e sempre com excessiva liberdade (aos menos para os olhos de hoje). Em alguns poemas, valeu-se do recurso “à imitação de (...)”, como no caso do poema em que deixou explícito que imitara o francês Évariste de Parny (1753-1814). Já em outros poemas permanecem dúvidas quanto à autoria. É o caso de Cartas de Olinda a Alzira (ilustradas), trabalho de alto mérito literário, filosófico, científico e moral atribuído ao grande poeta Bocage (Porto, s/d) em que não há uma mínima referência a Portugal, o que leva à suspeita de que seja uma tradução.
Para reforçar a suspeição, há um manuscrito na Biblioteca Nacional de Lisboa (Reservados, códice 10576, fls.81-112)
que carrega o extenso título “Miscelânea Curiosa ou Colecção de diversas Poesias & vários Autores: a maior parte de Bocage, ou traduções originais; algumas de J.A.da C. (José Anastácio da Cunha) e outras por autores incertos e que não conheço; e juntas por José Câncio Ferreira de Lima em Coimbra (acabado e revisto em Março de 1825)”, no qual se lê que “Cartas de Olinda a Alzira” foram traduzidas por Bocage de Voltaire (1694-1778). O problema é que, até hoje, não apareceu o original que seria de Voltaire. E, portanto, o poema continua a ser aceito como da lavra de Bocage.

III

Não se quer dizer que tenha sido esse o caso de Machado de Assis, mas é provável que o jovem tradutor, que na época tinha 20 anos de idade, tenha tomado algumas liberdades em relação ao texto de Hénaux, o que, certamente, ainda oferecerá panos para manga porque sempre haverá um crítico disposto a mostrar que haveria muito mais do escritor brasileiro naquela tradução do que do autor francês. Em outras palavras: quando traduzia, dentro de Machado de Assis, a veia do escritor seria mais forte que a do tradutor.
Aliás, é o que Massa conclui quando diz na Introdução para Machado de Assis tradutor: “(...) o confronto entre o ponto de partida (o texto original) e o ponto de chegada (a versão brasileira) é precioso para conhecer o nível lingüístico do tradutor-escritor que pode se metamorfosear em escritor-tradutor”. Mais adiante, ele reforça essa tese, quando se refere à peça “Hoje avental, amanhã luva”, estudada em A juventude de Machado de Assis, ao afirmar que, “apesar da referência explícita a um texto estrangeiro, a contribuição de Machado de Assis é tamanha que temos diante de nós uma obra repensada senão reescrita”. Em outras palavras: estaríamos diante de uma co-autoria, uma adaptação ou uma recriação. Mas, segundo Massa, não seria esse o caso de Queda (...), que “é pura e simplesmente uma tradução, e nada mais que isso”.
Mas quem vier a ler Queda (...), que é um texto de poucas páginas, na versão machadiana, com certeza, não vai deixar de constatar que ali já haveria muito do Machado de Assis escritor, assim como a “Capitu da praia da Glória já estava dentro da de Matacavalos”. O professor Mauro Rosso, por exemplo, que promete lançar neste ano pela Editora PUC-Rio/Edições Loyola Queda que as mulheres têm para os tolos: Machado de Assis, o subterfúgio, o feminino, a transcendência literária, defende que a obra de Hénaux serviu de inspiração a Machado para a escrita de sua primeira peça teatral, de seu primeiro romance e, por fim, de sua obra definitiva e consagradora, explicando que todos esses textos têm por modelo essa teoria amorosa, a de que as mulheres dariam preferência aos tolos (ou aos imbecis) do que aos homens de espírito (os intelectuais).
Rosso, mesmo depois da afirmação de Massa, ainda sustenta ser Queda uma criação original de Machado “inspirada” na obra De l´amour des femmes pour les sots, de Hénaux, acrescentando que, em todos os textos do Machado mais amadurecido, haveria essa ideologia da ambigüidade, pois todos abordam a questão da escolha que a mulher deve fazer entre um homem de espírito e um homem sem juízo. Aliás, o reflexo da tese da "queda pelos tolos" na obra de Machado de Assis foi analisado pela Eliane Fernanda Cunha Ferreira em sua tese de doutoramento Para traduzir o século XIX: Machado de Assis, publicada pela Academia Brasileira de Letras/Annablume Editora em 2004.

IV

Diz Massa na segunda parte de Machado de Assis tradutor que, se nos deixarmos levar pelas aparências, o escritor conheceria, além do francês, os idiomas inglês e italiano. Mas, na verdade, as traduções que fazia eram sempre a partir do francês. Aqui também Bocage serve como contraponto. O poeta setubalense sempre traduziu do francês, mas há um anúncio da Oficina do Arco do Cego num livro de 1801 que prometia traduções de Bocage de “edições dos poetas gregos”, embora não se saiba que tenha algum dia aprendido a língua grega. Tratava-se, obviamente, de um exagero, uma irresponsabilidade editorial que seria comum no século XIX.
No caso de Machado de Assis, Massa diz que o tradutor tinha também conhecimentos do espanhol, além de ler em inglês, o que não significa que estivesse em condições de se lançar à tarefa de traduzir textos em inglês. E mostra como exemplo a tradução que fez de Oliver Twist, de Charles Dickens (1812-1870), cuja versão brasileira segue passo a passo uma tradução francesa. Desempenhando uma atividade mal remunerada – aspecto que, aliás, no Brasil de hoje, não mudou muito –, o jovem Machado, aparentemente, assumia muito trabalho e, às vezes, traduzia a vôo de pássaro – na maioria, trabalhos encomendados, como peças teatrais. É ao estudo destes textos que Massa dedica um capítulo de sua tese complementar.
É de lembrar que o escritor começou a traduzir em 1857, aos 18 anos de idade, e sua atividade nesse campo continuou até 1894, provavelmente uma época da sua vida em que, funcionário público bem situado na carreira, já não precisaria dessa remuneração-extra para manter o orçamento doméstico. Seja como for, as traduções ocupam um período bastante longo em sua carreira, como assinala o mestre francês. Seriam 44 traduções, segundo a Bibliografia de José Galante de Sousa (1913-1986), mas, de acordo com Massa, o número chegaria a 46, pois o estudioso localizou ainda uma tradução integrada a uma crônica e uma peça inédita.

V

Para quem quiser conhecer Queda (...), na versão machadiana, é de lembrar que há no mercado duas edições recentes. Uma é aquela que a Crisálida publicou em 2003, à qual o editor e seu organizador, Oséias Silas Ferraz, juntou outros textos de Machado: “O ideal do crítico” (1865), “Literatura Brasileira – instinto de nacionalidade” (1873), “Elogio da vaidade” (1878), “Teoria do medalhão” (1882) e o poema “À Carolina” (1906), que o autor dedicou a sua companheira de toda a vida. De assinalar é que o editor preferiu manter a grafia da época.
A outra é a edição da Editora da Unicamp lançada no ano passado, com estabelecimento do texto de Ana Cláudia Suriani da Silva, apresentação de Élide Valarini Oliver e introdução crítico-filológica de Ana Cláudia Suriani da Silva e Eliane Fernanda Cunha
Ferreira. Nesse livro, Ana Cláudia e Eliane Fernanda mostram quem foi Hénaux, “um belga, jurista de profissão, que provavelmente atuava em Liège, dado serem todas as suas outras publicações relativas a essa cidade”. Elas levantaram que De l´amour teve repercussão na época de sua publicação na Bélgica, “uma vez que existem pelo menos quatro edições da obra, duas tendo sido publicadas num intervalo de apenas um ano”.
Qualquer que seja a escolha, imprescindível é ao leitor conhecer também Machado de Assis tradutor, de Jean-Michel Massa, não só para saber pormenores a respeito de sua versão da obra de Hénaux, mas principalmente para constatar como funcionava o trabalho de tradução do bruxo do Cosme Velho, sua capacidade e aptidões. Depois disso, só nos restaria fazer aqui um fecho à imitação de Dom Casmurro. Vamos à segunda edição de A juventude de Machado de Assis.

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(*) Adelto Gonçalves é doutor em Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo e autor de Gonzaga, um Poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona Brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002) e Bocage – o Perfil Perdido (Lisboa, Caminho, 2003). E-mail: adelto@unisanta.br


sábado, 23 de janeiro de 2010

Machado de Assis: outra leitura

por Adelto Gonçalves

I
Só mesmo o atraso cultural em que está mergulhado justificaria que, mais de um século depois da morte de Machado de Assis (1839-1908), o Brasil ainda não conte com uma edição da obra completa daquele que é considerado o seu maior escritor. Para reparar essa falha (vergonhosa para o big business editorial brasileiro), a Editora da Universidade Estadual Paulista (Unesp) pretende entregar a urgente tarefa a uma equipe de especialistas sob o comando do professor francês Jean-Michel Massa, autor de A juventude de Machado de Assis – 1839-1870 (Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1971; 2ªed. São Paulo: Ed.Unesp, 2009), tradução de Marco Aurélio de Moura Matos de sua tese de doutoramento La jeunesse de Machado de Assis (1839-1870): essai de biographie intellectuelle (Université de Poitiers, 1969).
Enquanto não se criam as condições materiais para um empreendimento dessa envergadura – que seria comum em países desenvolvidos --, o professor Jean-Michel Massa faz o que pode e está ao seu alcance, embora tenha sido obrigado a esperar quase 40 anos não só para que uma editora universitária brasileira se interessasse por uma segunda edição de sua obra como para que um editor privado colocasse nas livrarias outros de seus estudos relacionados a Machado de Assis. Assim é que a Editora da Unesp acaba de reeditar A juventude de Machado de Assis e a Crisálida Livraria e Editora
, de Belo Horizonte, de lançar Três peças francesas traduzidas por Machado de Assis, com organização, introdução e notas de Jean-Michel Massa.
É de notar que, em 2008, a Crisálida já lançara o ensaio Machado de Assis tradutor, segunda parte da tese de doutoramento de Massa. Nesse trabalho, o autor acrescentou um apêndice em que transcreveu e anotou duas traduções inéditas de Machado: “Os burgueses de Paris” e “Tributos da mocidade”. Juntamente com uma terceira peça traduzida, “Forca por Forca”, também inédita, esses textos formam Três peças francesas traduzidas por Machado de Assis.
Ao lado de Raymundo de Magalhães (1907-1981) e José Galante de Sousa (1913-1986), Massa (1930), nascido em Paris, radicado em Rennes, é um dos principais pesquisadores dos textos machadianos, tendo ainda organizado Dispersos de Machado de Assis (1965) e Bibliographie descriptive, analytique et critique de Machado de Assis (1957-1958), além de numerosos ensaios e artigos com destaque para “La bibliothéque de Machado de Assis”, em que identifica 718 dos livros que pertenceram à biblioteca do escritor, e “A década do teatro: 1859-1869”, publicado em Cadernos de Literatura Brasileira (São Paulo: IMS, 2008).

II
Reflexo do atraso cultural brasileiro também é o desprezo que se dá no País ao trabalho do tradutor, atividade sempre mal remunerada e mal analisada. Por isso, não é de estranhar que igualmente as traduções de Machado de Assis tenham sido pouco valorizadas, vistas como uma atividade menor de alguém que na juventude precisava de alguns tostões para equilibrar o orçamento doméstico. Se são raros até hoje os estudos consagrados à tradução literária no Brasil, justifica-se, portanto, que poucos estudiosos tenham tido o interesse despertado para a atividade de tradutor de Machado de Assis.
É por isso que Três peças francesas traduzidas por Machado de Assis adquire excepcional importância, ao permitir outra leitura do escritor e de sua obra, pois não há dúvida de que os temas e autores que traduziu muito influenciaram nos livros que escreveu. Além disso, Machado de Assis é de uma época em que não se exigia do tradutor o rigor e a fidelidade ao original que são exigidos hoje, o que significa que, em muito do que traduziu, pode ter deixado a sua marca de ficcionista, com acrescentamentos que só melhorariam o texto original.
Por isso, muitas das traduções de Machado de Assis podem ser vistas mais como adaptações ou recriações. E, portanto, não é de estranhar que provoquem muitas discussões e dissensões entre os críticos, pois sempre haverá quem veja em determinado texto muito mais de Machado do que do autor original. O que explica também que, contra todas as evidências, alguns acadêmicos tenham continuado a tomar Queda que as mulheres têm para os tolos (Belo Horizonte: Crisálida, 2003; Campinas: Editora da Unicamp, 2008;) como obra da lavra de Machado de Assis, quando é uma tradução de um original do belga Victor Hénaux (Liège: F.Renard, Editeur, 1858), ainda que, em 1971, Massa já houvesse provado isso. Isso se deu, provavelmente, porque A juventude de Machado de Assis se tornou obra rara, praticamente ausente das bibliotecas universitárias.
Neste aspecto é de lembrar, como exemplo, que Bocage (1765-1805), ao traduzir, também deixava a imaginação voar, a ponto de a tradução que fez de Os jardins ou a arte de aformosear as paisagens (Lisboa: Tipografia Calcográfica e Literária do Arco do Cego, 1800), de Delille (1738-1813), apresentar 2.388 versos, enquanto o poema original comporta 1962 versos, como assinalou António Gedeão, pseudônimo de Rómulo de Carvalho (1906-1997), em “O sentimento científico em Bocage” (separata da revista Ocidente, Lisboa, 1965, v. LXIX, p.190-191).

III
Para duas obras reunidas em Três peças (...), não se trata de uma descoberta, adverte Massa. “Os burgueses de Paris” e “Tributos da mocidade” estão assinaladas em Bibliografia de Machado de Assis (1965), de Galante de Sousa. O manuscrito de “Os burgueses de Paris” faz parte do acervo da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro (BNRJ), onde Massa o consultou e fotocopiou para compará-lo ao original de Dumanoir, Clairville e Jules Cordier, seus autores. É comédia de três atos, que foi representada no teatro Ginásio, em Paris, em junho de 1850. A tradução de Machado de Assis deve se situar entre 1855 e 1859, segundo Galante de Sousa.
O segundo texto, “Il faut que jeunesse se paye”, ou “Tributos da mocidade”, é comédia em quatro atos, de Léon Gozlan (1806-1866), que foi representada em Paris pela primeira vez em setembro de 1858 O manuscrito também está na BNRJ. A publicação dessas duas peças fazia parte de plano aprovado em 1958 pela Comissão Machado de Assis, mas a iniciativa não foi adiante por alguma razão que não se conhece, mas que se pode intuir com facilidade em razão da leviandade com que as questões culturais são tratadas no País.
A terceira peça, ‘Forca por forca”, Massa soube que se encontrava conservada numa biblioteca pública de São Paulo por indicação de seu amigo Décio de Almeida Prado (1917-2000). É um drama em cinco atos e um prólogo de Paul-Jules Barbier (1803-1869), representado pela primeira vez em Paris em 13 de fevereiro de 1867 no teatro do Ambigu Comique. Tinha por título “Maxwel” (1864). “Mais que um drama, é uma tragédia, uma vez que há um assassinato que é descoberto graças ao juiz chamado Maxwel”, diz Massa, lembrando que esse nome remete para o físico escocês James Clark Maxwell (1831-1879), divulgador das teorias científicas na linha do médico Franz Anton Mesmer (1734-1815), nome citado na peça, autor, um século antes, do magnetismo animal.

IV
Na introdução que escreveu para Três peças (...), Massa dá outra contribuição notável, ao mostrar o contexto em que essas peças foram escritas e quem foram os seus autores. Por Massa, ficamos sabendo que “Os burgueses de Paris”, peça política, foi escrita a soldo do poder por Clairville, pseudônimo de Louis-François Nicolaie (1811-1879), Jules Cordier (1802-1859) e Dumanoir, pseudônimo de Philippe-François Pinel (1806-1865), diretor de teatro.
Segundo Massa, este Pinel seria um autor vira-casaca, defensor da República que passou a apoiar o príncipe Napoleão, autor do golpe de estado, ou seja, um oportunista, que escrevia e montava vaudevilles para agradar ao poder.
De Léon Gozlan, Massa diz ter sido um romancista que por algum tempo trabalhou como secretário de Honoré de Balzac (1799-1850), atividade de que se aproveitou para escrever Balzac intime chez lui. Já Paul-Jules Barbier, autor de ‘Maxwel”, foi um escritor célebre, responsável por vários livretos de óperas representadas ainda hoje.
Diz Massa, com certa ironia, que o tema de “Maxwel” não é estranho ao Brasil, que até hoje, em alguns de seu segmentos, ainda discute a teoria de Hippolyte Léon Denizar Rivail, aliás Allan Kardec (1804-1869), pedagogo considerado codificador do espiritismo. É de notar que ainda hoje os franceses se surpreendem com a romaria de turistas brasileiros em torno de seu túmulo em Paris, já que é um nome completamente esquecido na França e que, em sua época, foi visto mais como um charlatão do que um investigador de fenômenos paranormais. E que Machado de Assis costumava ridicularizar as experiências mediúnicas que se faziam no Rio de Janeiro.
Massa assegura que o jovem Machado dominava amplamente o francês, mas não deixa de apontar alguns deslizes do tradutor, tendo encontrado pelo menos dez equívocos em “Os burgueses de Paris”. Um deles é que Machado não percebeu que La Pistole, nome de uma prisão em Paris, queria designar também um local em que, mediante pagamento por fora, o preso recebia um tratamento melhor. Outro erro é que o tradutor tomou “moutard” como nome de família, embora a palavra em francês falado queira dizer “moleque”. Equívocos que, provavelmente, deram-se porque Machado de Assis nunca saiu do Brasil – raras vezes deixou a cidade do Rio de Janeiro – e não podia dominar nuances que só mesmo quem vivera na França poderia distinguir com facilidade.
A essa época, Machado de Assis era ainda muito jovem e mais conhecido como “folhetinista, crítico teatral, crítico literário, comediógrafo, poeta, tradutor – de poemas, peças teatrais e romances – e até mesmo como censor do Conservatório Dramático", órgão oficial incumbido de julgar os textos que seriam levados ao palco, como observa João Roberto Faria em Do teatro: textos críticos e escritos diversos (São Paulo, Editora Perspectiva, 2008). Ele já contava com 31 anos de idade, quando começou a publicação de seus livros de contos e romances.

V
Além de especialista na obra de Machado de Assis, Massa é autor de notáveis estudos acerca de Manuel Antônio de Almeida (1831-1861), Carlos Drummond de Andrade (1902-1987) e outros nomes da literatura brasileira. De Drummond, traduziu Reunião (1969). Nos últimos tempos, tem se dedicado a estudar o português falado em outros países de expressão portuguesa, tendo publicado até o momento três volumes do Dictionnaire encyclopédique et bilingue Portugais-Français des particularités de la langue portugaise (vol. I: Guiné-Bissau; vol. II: São Tomé-Príncipe; vol. III: Cabo Verde). Em 2007, recebeu a medalha comemorativa dos 110 anos da Academia Brasileira de Letras, entidade que já o havia agraciado em 1986 com a medalha Machado de Assis.

[Adelto Gonçalves
é autor associado de Tlaxcala, a rede de tradutores pela diversidade lingüística. Este texto foi publicado em 18 de junho de 2009 em http://www.tlaxcala.es/pp.asp?reference=7887&lg=po]

Canções da inocência e da experiência


Sobre tigres, lobos e cordeiros
por Marcelo Coelho [Folha de S.Paulo, 22 de junho de 2005]

Indicações de livros são sempre coisa arriscada; a rigor, só deveriam ser feitas a amigos próximos, a pessoas cujos interesses conhecemos bem. Mas quem atualmente se decepciona com o governo, quem já está decepcionado há tempo e quem nunca teve ilusão nenhuma a esse propósito talvez tire proveito de um pequeno e clássico livro de poemas de William Blake (1757-1827) que, pela primeira vez, é traduzido na íntegra para o português.
Trata-se de “Canções da Inocência e da Experiência”, livro lançado neste ano pela editora Crisálida, de Belo Horizonte, com tradução de Mário Alves Coutinho e Leonardo Gonçalves.
Alguns poemas de Blake estão presentes em todas as antologias da literatura inglesa. São simples de ler, difíceis de entender e quase impossíveis de traduzir: é o caso de “O Tigre”, texto hipnótico, obsessivo, que parece perseguir o seu leitor.
“Tyger Tyger, burning bright,
In the forests of the night;
What immortal hand or eye,
Could frame thy fearful symmetry?”

A estrofe inicial se repete no fim, como que “enjaulando” o poema, e as traduções não conseguem domá-lo completamente.
“Tigre, tigre, flamante fulgor
Nas florestas de denso negror,
Que olho imortal, que mão poderia
Te moldar a feroz simetria?”

– assim era a tradução de Paulo Vizioli, numa coletânea publicada há 20 anos.
Mário Coutinho e Leonardo Gonçalves mantêm a exótica ortografia do original e buscam seguir o ritmo de tambor na selva:
“Tygre, Tygre, fogo ativo,
Nas florestas da noite vivo;
Que olho imortal tramaria
Tua temível simetria?”.

Melhor; ainda assim, parece mais fácil entender “in the forests of the night” em inglês mesmo, do que acompanhar a pirueta do “nas florestas da noite vivo”…
O poema, em todo caso, continua encadeando suas perguntas:
“Que profundezas, que céus,
Acendem os olhos teus?
(…)
Que martelo? Que elo? Tua mente
Vem de qual fornalha ardente?”.

Em inglês:
“In what distant deeps or skies,
Burnt the fire of thine eyes?
(…)
What the hammer? what the chain,
In what furnace was thy brain?”.

As seis estrofes repetem a mesma inquietação: de onde vem, quem criou, quem forjou esse animal terrível? O tom de ameaça culmina numa última questão: “Did he who made the Lamb make thee?” (“Quem te fez, fez também o Cordeiro?”, traduz Paulo Vizioli).
O clima de terror romântico, a concisão e a eletricidade de alguns versos tornam “O Tigre” um poema inesquecível. Mas, de minha parte, sempre me pareceu que havia algo de inconvincente, não sei se de exagerado, de sensacionalista, naquilo tudo… Talvez porque um tigre não me pareça o animal mais terrível, mais demoníaco de toda a criação. A beleza do felino depõe, a meu ver, bastante a favor do Pai Celeste – que talvez não estivesse tão inspirado quando fez o cordeiro. De qualquer modo, um poema sobre o lobo, ou o chacal, talvez funcionasse melhor… Preferências zoológicas à parte, para mim é como se o poema de Blake estivesse tentando dizer uma “outra coisa” que não se revela; sua simplicidade não se entrega, parece fechar-se em si mesma.
Mas “O Tigre” pertence à segunda parte do livro – as “Canções da Experiência”. Daí a vantagem da edição completa: é que na primeira parte, as “Canções da Inocência”, pode-se ler o poema que faz par com esse. Trata-se, é claro, de “O Cordeiro” e imita a mais boboca e fofinha canção de ninar que alguém possa querer:
“Cordeirinho, quem te fez?
Pois tu sabes quem te fez?
Deu-te a vida e deu-te pasto,
Ribeirinho e largo prado;
Lã macia e sem malícia”.

Em inglês, chama a atenção a mesma rima em “ight”, que era tão sinistra no caso do tigre:
“Little Lamb who made thee
Dost thou know who made thee
Gave thee life & bid the feed,
By the stream & o’er the mead;
Gave thee clothing of delight
Softest clothing wooly bright (…)”.

Com esta edição bilíngüe, o leitor pode então apreciar o paralelismo, as simetrias entre os poemas da primeira parte e os da segunda. Nas “Canções da Inocência”, lemos versos otimistas sobre um limpadorzinho de chaminés que cumpre, feliz, o seu dever e vai para o Céu. Nas “Canções da Experiência”, a realidade é bem outra. O prefácio de Mário Coutinho e Leonardo Gonçalves acrescenta informações importantes sobre aquele ofício, uma das mais horríveis modalidades de trabalho infantil inventadas pelo homem. Só crianças muito pequenas, é claro, podiam entrar nas chaminés para limpá-las; “seus joelhos e cotovelos, usados para subir, sangravam e ficavam em carne viva”.
Blake, dizem os prefaciadores, foi sempre considerado um místico, um louco, um ingênuo pelos seus contemporâneos. Há, aliás, uma frase linda da sra. Blake a respeito dele: “Convivo muito pouco com meu marido. Ele está sempre no Paraíso”. Gonçalves e Coutinho ressaltam a exatidão convicta com que o poeta denunciava os horrores do capitalismo inglês. Citam, por fim, o crítico Northrop Frye, para quem Blake pode ser lido em qualquer época e parecerá sempre estar se referindo às questões da atualidade.
Questões da atualidade? Não gosto de pensar que a velha “inocência” petista deu lugar à “experiência” destes dias de Delúbio e Marcos Valério. Seria nobilitar, como feitos de maturidade política, os entendimentos estarrecedores do partido com o fisiologismo. Não é também “maturidade”, entretanto, o que se elogia quando Palocci e sua equipe recebem o assentimento do mercado? Quem fez Delúbio não fez Palocci?
Mas o poema de Blake, com seus cordeiros e tigres, não me parece vir tão a propósito agora quanto a frase de outro poeta, Paul Valéry: um lobo, diz ele, nada mais é que um cordeiro assimilado.

sexta-feira, 22 de janeiro de 2010

Mercado Editorial no Brasil


Segue link para o texto de uma palestra de Jaime Mendes, que trabalha na Zahar, sobre o mercado editorial. É um panorama completo do mercado brasileiro, baseado em dados de 2008, vale conferir:

Reinauguração da Travessa do Ouvidor - RJ

A tradicional loja da Travessa do Ouvidor reabre com a proposta de apoiar a bibliodiversidade, com acervo focado nas editoras independentes e nas universitárias. Resultado de parceria da Travessa com a LIBRE [Liga Brasileira de Editores] e com a ABEU [Associação das Editoras Universitárias], a loja reabre no dia 25 de janeiro de 2010.
Clique na imagem para ampliar e ver a programação

segunda-feira, 18 de janeiro de 2010

Literatura e cinema: Blake, Lawrence, Godard

Em breve os leitores e pesquisadores de literatura e cinema poderão apreciar três ótimas novidades que serão lançadas pela Crisálida:

- Tudo que vive é sagrado, William Blake & D. H. Lawrence - 2ª edição - tradução e ensaios de Mário Alves Coutinho. Antologia de poemas de dois grandes poetas da língua inglesa. Além dos poemas (quase todos inéditos no Brasil), o livro contém um ensaio sobre cada autor, aproximando-os – apesar do intervalo de quase cem anos entre a vida de Blake (1757-1827) e Lawrence (1885-1930).

- O livro luminoso da vida, antologia de ensaios sobre literatura e arte de D.H. Lawrence, com tradução, organização e introdução de Mário Alves Coutinho. Ensaios sobre o romance, Thomas Mann, Dostoievski, William Carlos Williams, Nathaniel Hawthorne, Walt Whitman...

- Escrever com câmera: a literatura cinematográfica de Jean-Luc Godard, ensaio de Mário Alves Coutinho sobre a obra do cineasta francês Godard e suas relações com a literatura. O livro é resultado de sua tese de doutorado.

Médicos e seus doentes imaginários


Em sua edição de 30 de setembro de 2009, a Revista Veja publicou uma matéria assinada por Naiara Magalhães destacando o uso que alguns hospitais e faculdades de medicina estão fazendo das artes cênicas para melhorar a qualidade da relação entre médico-paciente. Curiosamente, a reportagem termina com a seguinte sugestão: “No século XVII, o dramaturgo francês Molière (1622-1673) usava o palco para criticar a precariedade da ciência de seu tempo e condenar, em especial, o comportamento dos médicos, marcado pelo charlatanismo, descaso e frieza. Em O doente imaginário, uma de suas peças mais encenadas, os médicos são bufões que só pensam em dinheiro. Talvez fosse interessante – e instrutivo – incluir a leitura de Molière nas simulações que ensinam os médicos a ouvir, consolar e olhar nos olhos de seus pacientes.”
O doente imaginário foi a última peça escrita e encenada por Molière. Durante a quarta apresentação ele, que fazia o papel principal, acabou tendo crises de tosse e hemoptise nada imaginárias e faleceu pouco depois. Artista dos costumes e vícios mais delicados do homem, Molière dedicou toda a sua vida ao teatro, renunciando aos privilégios da família e se tornando um dos maiores símbolos da arte do palco ao longo dos séculos. Foi autor, administrador da sua trupe, encenador, diretor, ator não só em suas peças, mas em dezenas de outras.
A comédia fecha com chave de ouro a sua produção e vem somar-se a longa série de obras que satirizam os médicos e a medicina da época, tema de grande atualidade: faz pensar nos limites da nossa ciência e na arrogância dos detentores de conhecimentos especializados.
A publicação de O doente imaginário da Editora Crisálida é a única integral e bilíngue (francês-português) deste famoso texto de Molière no Brasil. A última comédia escrita e encenada por Molière. Além do humor, a crítica social contida no texto, em especial à medicina e aos médicos, é de grande atualidade.

(Revista Veja - edição 2132 – ano 42 – nº 39 – 30 de setembro de 2009)