segunda-feira, 25 de janeiro de 2010

Machado de Assis: tradutor ou recriador?


por Adelto Gonçalves (*)

I

Se Machado de Assis (1839-1908) é hoje, com certeza, o autor brasileiro mais discutido e analisado pela academia nacional, além de bastante estudado em universidades estrangeiras, é de lamentar que tenha sido necessário um período de quase quatro décadas para que A juventude de Machado de Assis (1839-1870): ensaio de biografia intelectual (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1971), de Jean-Michel Massa, recebesse uma nova edição, embora as livrarias do País estejam abarrotadas de obras sem a menor importância e de conteúdo duvidoso, o que é um indicador da pujança de nosso mercado editorial – que se equivaleria ao mercado de língua espanhola em termos econômicos --, mas também da indigência cultural à que a população, de um modo geral, está relegada.
Se A juventude de Machado de Assis chega agora em junho de 2009 às livrarias em lançamento da Editora da Universidade Estadual Paulista (Unesp), é bom que o leitor saiba que, em 2008, a Crisálida Livraria e Editora, de Belo Horizonte, deu à estampa o ensaio Machado de Assis tradutor, com tradução do editor Oséias Silas Ferraz, que constitui um complemento à tese de doutoramento que o professor Jean-Michel Massa defendeu em 1969 na Faculdade de Letras da Universidade de Poitiers, na França, e que resultou naquela monumental biografia.
Originalmente, essa tese complementar traz um apêndice com traduções (inéditas) de duas peças por Machado de Assis, “Os burgueses de Paris” e Tributos da mocidade”, que, porém, não constam deste livro impresso. Ao lado de uma terceira peça traduzida, “Forca por forca”, essas duas peças, aliás, compõem Três peças francesas traduzidas por Machado de Assis, com notas de Jean-Michel Massa, que, em lançamento da Crisálida, chega às livrarias juntamente que a segunda edição de A juventude (...). Feliz coincidência.
Organizador de Dispersos de Machado de Assis (1965) e de Bibliographie descriptive, analytique et critique de Machado de Assis (1957-1958) e autor de numerosos artigos e ensaios sobre a produção machadiana, com destaque para “La bibliothèque de Machado de Assis”, em que identifica 718 obras que pertenceram ao acervo particular do escritor, Massa, 79 anos, é um grande estudioso da literatura brasileira dos séculos XIX e XX, com trabalhos sobre Manuel Antônio de Almeida (1831-1861), José de Alencar (1829-1877) e Carlos Drummond de Andrade (1902-1987), do qual traduziu Reunião (1983).
Em parceria com sua mulher, a professora Françoise Massa, também organizou o Dictionnaire Encyclopedique de la Langue Portugaise, do qual já foram publicados três volumes: um sobre a Guiné-Bissau, outro sobre São Tomé e Príncipe e um terceiro sobre Cabo Verde.

II

Apesar de todo esse currículo, o que tornou o nome do professor Massa um pouco mais conhecido entre nós foi que, por meio de suas pesquisas, acabou por provar que Machado de Assis não era o autor de Queda que as mulheres têm para os tolos, como a crítica brasileira, contra todas as evidências, assegurou por muito tempo e até recentemente por desconhecimento da própria obra do estudioso francês, que saiu no Brasil em 1971, mas que hoje constitui livro difícil de encontrar.
Aliás, Machado de Assis nunca disse que era autor de Queda (...), pois na primeira edição da obra no Brasil, em 1861, pela Tipografia de F.de Paula Brito, consta na capa com todas as letras que se trata de “tradução do snr. Machado de Assis”. Mesmo assim, não foram poucos os que insistiram que Machado seria o verdadeiro autor do opúsculo, embora Massa já tivesse localizado o original num antigo catálogo de obras anônimas da Biblioteca Nacional de Paris atribuído ao belga Victor Hénaux.
Se alguma contribuição este historiador literário pode dar a essa discussão depois de ter estudado a fundo as obras de dois poetas setecentistas, é que no século XVIII e, provavelmente, no XIX, não havia ainda a consciência ou o consenso de que a tradução deveria ser o mais fiel possível ao original. Pelo contrário, o comum é que o tradutor tomasse muitas liberdades -- que hoje não seriam admitidas -- em relação ao texto original. Muitas vezes, alterava tanto o original de um poema ou um trecho de prosa que acabava sentindo que fizera outro texto. Outras vezes, anunciava que fizera determinado poema “à imitação de (...)”. Ou seja, inspirava-se num poema que quase sempre seria francês para escrever outro em português.
Manuel Maria de Barbosa du Bocage (1765-1805), por exemplo, traduziu muito do francês – entre outros, Grecourt, Piron, Dorat, Logouvé, Chenier, Bernard, Fontanel, Delille, Castel, segundo José Agostinho de Macedo (1761-1831) -- e sempre com excessiva liberdade (aos menos para os olhos de hoje). Em alguns poemas, valeu-se do recurso “à imitação de (...)”, como no caso do poema em que deixou explícito que imitara o francês Évariste de Parny (1753-1814). Já em outros poemas permanecem dúvidas quanto à autoria. É o caso de Cartas de Olinda a Alzira (ilustradas), trabalho de alto mérito literário, filosófico, científico e moral atribuído ao grande poeta Bocage (Porto, s/d) em que não há uma mínima referência a Portugal, o que leva à suspeita de que seja uma tradução.
Para reforçar a suspeição, há um manuscrito na Biblioteca Nacional de Lisboa (Reservados, códice 10576, fls.81-112)
que carrega o extenso título “Miscelânea Curiosa ou Colecção de diversas Poesias & vários Autores: a maior parte de Bocage, ou traduções originais; algumas de J.A.da C. (José Anastácio da Cunha) e outras por autores incertos e que não conheço; e juntas por José Câncio Ferreira de Lima em Coimbra (acabado e revisto em Março de 1825)”, no qual se lê que “Cartas de Olinda a Alzira” foram traduzidas por Bocage de Voltaire (1694-1778). O problema é que, até hoje, não apareceu o original que seria de Voltaire. E, portanto, o poema continua a ser aceito como da lavra de Bocage.

III

Não se quer dizer que tenha sido esse o caso de Machado de Assis, mas é provável que o jovem tradutor, que na época tinha 20 anos de idade, tenha tomado algumas liberdades em relação ao texto de Hénaux, o que, certamente, ainda oferecerá panos para manga porque sempre haverá um crítico disposto a mostrar que haveria muito mais do escritor brasileiro naquela tradução do que do autor francês. Em outras palavras: quando traduzia, dentro de Machado de Assis, a veia do escritor seria mais forte que a do tradutor.
Aliás, é o que Massa conclui quando diz na Introdução para Machado de Assis tradutor: “(...) o confronto entre o ponto de partida (o texto original) e o ponto de chegada (a versão brasileira) é precioso para conhecer o nível lingüístico do tradutor-escritor que pode se metamorfosear em escritor-tradutor”. Mais adiante, ele reforça essa tese, quando se refere à peça “Hoje avental, amanhã luva”, estudada em A juventude de Machado de Assis, ao afirmar que, “apesar da referência explícita a um texto estrangeiro, a contribuição de Machado de Assis é tamanha que temos diante de nós uma obra repensada senão reescrita”. Em outras palavras: estaríamos diante de uma co-autoria, uma adaptação ou uma recriação. Mas, segundo Massa, não seria esse o caso de Queda (...), que “é pura e simplesmente uma tradução, e nada mais que isso”.
Mas quem vier a ler Queda (...), que é um texto de poucas páginas, na versão machadiana, com certeza, não vai deixar de constatar que ali já haveria muito do Machado de Assis escritor, assim como a “Capitu da praia da Glória já estava dentro da de Matacavalos”. O professor Mauro Rosso, por exemplo, que promete lançar neste ano pela Editora PUC-Rio/Edições Loyola Queda que as mulheres têm para os tolos: Machado de Assis, o subterfúgio, o feminino, a transcendência literária, defende que a obra de Hénaux serviu de inspiração a Machado para a escrita de sua primeira peça teatral, de seu primeiro romance e, por fim, de sua obra definitiva e consagradora, explicando que todos esses textos têm por modelo essa teoria amorosa, a de que as mulheres dariam preferência aos tolos (ou aos imbecis) do que aos homens de espírito (os intelectuais).
Rosso, mesmo depois da afirmação de Massa, ainda sustenta ser Queda uma criação original de Machado “inspirada” na obra De l´amour des femmes pour les sots, de Hénaux, acrescentando que, em todos os textos do Machado mais amadurecido, haveria essa ideologia da ambigüidade, pois todos abordam a questão da escolha que a mulher deve fazer entre um homem de espírito e um homem sem juízo. Aliás, o reflexo da tese da "queda pelos tolos" na obra de Machado de Assis foi analisado pela Eliane Fernanda Cunha Ferreira em sua tese de doutoramento Para traduzir o século XIX: Machado de Assis, publicada pela Academia Brasileira de Letras/Annablume Editora em 2004.

IV

Diz Massa na segunda parte de Machado de Assis tradutor que, se nos deixarmos levar pelas aparências, o escritor conheceria, além do francês, os idiomas inglês e italiano. Mas, na verdade, as traduções que fazia eram sempre a partir do francês. Aqui também Bocage serve como contraponto. O poeta setubalense sempre traduziu do francês, mas há um anúncio da Oficina do Arco do Cego num livro de 1801 que prometia traduções de Bocage de “edições dos poetas gregos”, embora não se saiba que tenha algum dia aprendido a língua grega. Tratava-se, obviamente, de um exagero, uma irresponsabilidade editorial que seria comum no século XIX.
No caso de Machado de Assis, Massa diz que o tradutor tinha também conhecimentos do espanhol, além de ler em inglês, o que não significa que estivesse em condições de se lançar à tarefa de traduzir textos em inglês. E mostra como exemplo a tradução que fez de Oliver Twist, de Charles Dickens (1812-1870), cuja versão brasileira segue passo a passo uma tradução francesa. Desempenhando uma atividade mal remunerada – aspecto que, aliás, no Brasil de hoje, não mudou muito –, o jovem Machado, aparentemente, assumia muito trabalho e, às vezes, traduzia a vôo de pássaro – na maioria, trabalhos encomendados, como peças teatrais. É ao estudo destes textos que Massa dedica um capítulo de sua tese complementar.
É de lembrar que o escritor começou a traduzir em 1857, aos 18 anos de idade, e sua atividade nesse campo continuou até 1894, provavelmente uma época da sua vida em que, funcionário público bem situado na carreira, já não precisaria dessa remuneração-extra para manter o orçamento doméstico. Seja como for, as traduções ocupam um período bastante longo em sua carreira, como assinala o mestre francês. Seriam 44 traduções, segundo a Bibliografia de José Galante de Sousa (1913-1986), mas, de acordo com Massa, o número chegaria a 46, pois o estudioso localizou ainda uma tradução integrada a uma crônica e uma peça inédita.

V

Para quem quiser conhecer Queda (...), na versão machadiana, é de lembrar que há no mercado duas edições recentes. Uma é aquela que a Crisálida publicou em 2003, à qual o editor e seu organizador, Oséias Silas Ferraz, juntou outros textos de Machado: “O ideal do crítico” (1865), “Literatura Brasileira – instinto de nacionalidade” (1873), “Elogio da vaidade” (1878), “Teoria do medalhão” (1882) e o poema “À Carolina” (1906), que o autor dedicou a sua companheira de toda a vida. De assinalar é que o editor preferiu manter a grafia da época.
A outra é a edição da Editora da Unicamp lançada no ano passado, com estabelecimento do texto de Ana Cláudia Suriani da Silva, apresentação de Élide Valarini Oliver e introdução crítico-filológica de Ana Cláudia Suriani da Silva e Eliane Fernanda Cunha
Ferreira. Nesse livro, Ana Cláudia e Eliane Fernanda mostram quem foi Hénaux, “um belga, jurista de profissão, que provavelmente atuava em Liège, dado serem todas as suas outras publicações relativas a essa cidade”. Elas levantaram que De l´amour teve repercussão na época de sua publicação na Bélgica, “uma vez que existem pelo menos quatro edições da obra, duas tendo sido publicadas num intervalo de apenas um ano”.
Qualquer que seja a escolha, imprescindível é ao leitor conhecer também Machado de Assis tradutor, de Jean-Michel Massa, não só para saber pormenores a respeito de sua versão da obra de Hénaux, mas principalmente para constatar como funcionava o trabalho de tradução do bruxo do Cosme Velho, sua capacidade e aptidões. Depois disso, só nos restaria fazer aqui um fecho à imitação de Dom Casmurro. Vamos à segunda edição de A juventude de Machado de Assis.

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(*) Adelto Gonçalves é doutor em Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo e autor de Gonzaga, um Poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona Brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002) e Bocage – o Perfil Perdido (Lisboa, Caminho, 2003). E-mail: adelto@unisanta.br


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