Canções da Inocência e da Experiência de William Blake [tradução, prefácio e notas de Mário Alves Coutinho e Leonardo Gonçalves. Editora Crisálida. Belo Horizonte. 2005]
por Claudio Willer
Desde o pioneiro Escritos de William Blake, preparado por Alberto Marsicano para a L&PM, apareceram outras edições brasileiras de sua obra. Mas ainda é pouco, diante da riqueza e complexidade desse poeta-profeta, messiânico, arcaico, e ao mesmo tempo atual, um precursor do Romantismo que passou a ser efetivamente lido a partir do Simbolismo. Por isso, é oportuna esta tradução dos seus Songs, ocasião para leitura ou releitura do Tigre e tantas outras de suas peças famosas.
Discípulo notório de Swedenborg e Jacob Boehme, Blake acrescentou-lhes um panteísmo e uma visão pagã de mundo. Para Elaine Pagels, em seu livro sobre evangelhos gnósticos, William Blake, observando esses retratos distintos de Jesus que aparecem no Novo Testamento, tomou o partido daquele que os gnósticos preferiam, no lugar da “visão de Cristo que vêem todos os homens”. Em apoio, cita trechos de The Everlasting Gospel, com sua relativização da percepção do Cristo:
Ambos lemos a Bíblia noite e dia,
Mas tu lês negro onde eu leio branco.
Mas Blake foi, mais que gnóstico, um criador de mitologias pessoais. Povoou o universo de divindades. Todas, é claro, alegorias. Demiurgos ou arcontes não faltam, em sua crítica à religião patriarcal. Um deles é Nobodaddy, o Pai-Ninguém, chamado de Pai do Ciúme que, silencioso e invisível, se esconde entre as nuvens, e cujas palavras e leis, interditando o fruto proibido, são escuridão e obscuridade. (cito da edição da The Oxford University Press dos poemas de Blake – tradução minha) Outro, Urizen, homófono de Your reason, You reason, ou Our reason. Em O Livro de Urizen, é o Demônio que engendrou a Eternidade descrita como Estranha, estéril, escura e execrável.
É como se O Livro de Urizen fosse uma combinação do Gênesis com o Apocalipse, na descrição dos embates do ensandecido Urizen com outros princípios criadores, o Eterno Profeta e Los, divindade primeira, derrotada, não antes de gerar Orc, o ser humano, de Enitharmon. Urizen por sua vez engendra contínuas aberrações: Thirel, Utha, Godna, Fuzon. Do pranto de Urizen nasce uma rede de lágrimas, a Rede da Religião, que por sua vez gera o esquecimento, a separação entre a esfera humana e divina. A visão de mundo desse poema é terrível:
a vida transcorre sob a égide da morte:
O Boi geme no matadouro
O cão no frio umbral.
(O Livro de Urizen foi traduzido por Alberto Marsicano em Escritos de William Blake, L&PM). Há mais personagens equivalentes aos arcontes do gnosticismo. Por exemplo, em Milton: Tudo tem seu Guardião, cada Momento, Minuto, Hora, Dia, Mês & Ano. […] Os Guardiões são Anjos da Providência em perpétua Vigília. E, em uma proliferação apocalíptica, em The Book of Los e The Four Zoas, entre outros de seus livros.
Contudo, há um limite para a associação do gnosticismo pessimista a Blake; e esse limite é traçado por aquela parte da sua obra que o tornou um autor cultuado por místicos modernos, pelos beat e pela contracultura: O Casamento do Céu e do Inferno, as Canções da Inocência e Experiência e um de seus textos especificamente teológicos, All Religions are One. Nelas, proclama a alegria de viver. Expressa a crença em uma síntese – o casamento do céu e do inferno, a reconciliação de Deus e Satanás, da razão e do prazer – através da experiência poética. Declara expressamente o monismo ao afirmar a unidade de corpo e espírito: o Corpo ou Forma Exterior do Homem é derivado do Gênio Poético, em All Religions are One. Argumenta na direção contrária à negação gnóstica do corpo, nas passagens famosas de O Casamento do Céu e do Inferno: Energia é a única força vital e emana do Corpo. A Razão é a fronteira ou o perímetro circunférico da Energia./ Energia é a Eterna Delícia. Panteísta, em O Casamento do Céu e do Inferno celebrou o mundo como coisa sagrada, e não como criação equivocada de um demiurgo rancoroso. Adamita, proclamou a inocência original da Humanidade e, ainda, a regência do mundo e da própria religião pelo Gênio Poético, equivalente ao Espírito da Profecia e ao pneuma, à energia primeira.
Uma interpretação para essa aparente oscilação em Blake, de um gnosticismo pessimista para um panteísmo otimista, pode ser dada à luz do seu pensamento político. Nesta nova edição brasileira das Canções, seus tradutores e prefaciadores, Mário Alves Coutinho e Leonardo Gonçalves, acentuam essa dimensão política e sugerem o Blake repórter, pela crítica social expressa em poemas como aqueles sobre os meninos limpadores de chaminés, explorados por seus empregadores: Ingênuo, místico, romântico (Blake é tido como um dos precursores do Romantismo): não seria mais apropriado dizer que Blake era um observador (talvez um repórter) extremamente realista, testemunhando e anotando as conseqüências e práticas da revolução industrial? Não seria ele, ao contrário de um louco, um narrador extremamente confiável dos horrores da implantação do capitalismo no primeiro país capitalista, a Inglaterra?
Por isso, afirmam, Blake …realizou poesia de altíssimo nível, mas foi também um magnífico repórter e historiador de sua importantíssima época histórica. Todas as mudanças, horrores e belezas estão lá registradas. […] Além do mais, Blake foi um ardente republicano, apoiando as revoluções francesa e americana (foi processado por seus “escritos sediciosos”, mas não chegou a ser penalizado devido a eles): na verdade, seu comportamento era anarquista e revolucionário, e confrontou em quase todos os momentos e quase todas as circunstâncias o crescente império inglês, como mostra David E. Erdman em Blake, Prophet Against Empire.
Ainda observam que… Seus escritos [de Blake] são anteriores a qualquer ideologia surgida na modernidade (anarquismo, socialismo, comunismo), seus livros proféticos têm muito a ver com aqueles deixados pelos profetas do Velho Testamento, que lutavam e esbravejavam contra a corrupção dos costumes do povo.
De fato, Blake precede, cronologicamente, até mesmo fundadores do socialismo utópico como Godwin e Fourier. Portanto, faltando-lhe um vocabulário propriamente político, de doutrinas que viram a ser formuladas ou que ainda estavam em preparação, utilizou categorias teológicas para fazer crítica social. Politizou liricamente o gnosticismo e o hermetismo, e os projetou na descrição da realidade que o cercava. Tomou emprestadas categorias e vocabulário dessas doutrinas, para descrever o mundo.
Por isso, foi simultaneamente arcaico, homem de seu tempo e inovador. Canções da Inocência e da Experiência é onde se encontram essas três dimensões. Pela qualidade da tradução e da edição, o leitor terá uma boa oportunidade para acompanhar o percurso desse repórter místico, e perceber o alcance e atualidade da sua rebeldia e aguda sensibilidade.
publicado originalmente na revista agulha #46