segunda-feira, 1 de março de 2010

Literatura não tem cor


LITERATURA NÃO TEM COR

Estudo revela “embranquecimento” de Machado de Assis

por Marisa Lajolo

A mulatice de Machado de Assis parece ter passado em branco em muitos estudos literários que acompanham, nesse processo de despigmentação textual, a galeria de fotos do escritor que também o embranquecem, fixando para a posteridade um respeitável senhor de barbas que a contempla com expressão indecifrável. Este embranquecimento de Machado parece articular-se à crença (amparada em algumas teorias) de que a literatura, sobretudo a literatura que se quer com L maiúsculo – a Literatura –, não tem cor nem sexo.
Mas tem: sexo e cor entraram na pauta de vertentes de ponta dos estudos literários. O recente livro de Eduardo Duarte, Machado de Assis afro-descendente (Rio de Janeiro, Belo Horizonte: Pallas/Crisálida, 2007), já nasce, assim, polêmico ao fazer uma releitura da obra do velho bruxo e, a partir dela, montar uma originalíssima antologia. Neste livro a afro-descendência de Machado se textualiza e um novo Machado insinua-se ao leitor, que, fisgado, se espanta com seus botões: como é que eu nunca tinha percebido isso? Com efeito, página após página – crônicas, poemas, contos e fragmentos de romance vão patrocinando uma releitura que vasculha, na obra machadiana, a presença de negros, de negras, de cenários e de assuntos ligados à escravidão.
Ao longo da antologia o leitor se surpreende pelos efeitos de sentido que a vizinhança de textos constrói. Surpreendem-se sobretudo os leitores familiarizados com a obra machadiana: é como se se estivesse contemplando uma galeria de quadros, todos muito conhecidos, mas aos quais o rearranjo confere uma perspectiva completamente nova.
O autor do livro encontra, no estilo do escritor, modos de dizer que representam a expressão formal da mestiçagem. No capítulo final, “Estratégias de caramujo”, um ousado gesto crítico retoma a figura do narrador machadiano e – discutindo-a uma vez mais – atribui a ela o afinamento de voz necessário para discutir negritude com os seletos leitores que, na época de Machado, liam-no nas revistas pelas quais circulavam suas histórias. Informando, ao longo da antologia, o modo de circulação original de cada texto, o livro permite vislumbrar ainda os itinerários que, no sistema literário, percorrem a literatura enquanto materialidade de texto impresso em papel.
O diapasão da voz machadiana é esmiuçado nos diferentes gêneros. O trabalho do autor do livro aloja-se no início em modestos rodapés, tornando-se minucioso e militante no ensaio final. Discute, desde um certo varejo do texto, como o nome de personagens, até aspectos de maior envergadura, como a articulação de grandes blocos narrativos. Na análise, estes blocos criam equilíbrios instigantes que, sugerindo muitas vezes cenas de paralelismo invertido, fazem eclodir no texto a velada violência que pautava o regime escravocrata vigente no Brasil e que talvez persista além da escravidão.
O olhar de Eduardo Duarte vai percorrendo a obra machadiana, contextualizando no modelo brasileiro da escravidão procedimentos textuais de Machado de Assis. Dentre as interpretações do crítico, a mais ousada é a que atribui ao caráter póstumo de Brás Cubas um valor político bastante alto: como diz o livro, Machado mata o senhor de escravos oito anos antes da abolição (p. 277).
Assumindo-se como sujeito de seu texto, o autor dialoga com a tradição crítica mais recente de Machado, optando às vezes por uma forma interrogativa de formular suas hipóteses. Ao alternar-se com interpretações categóricas e com informações que contextualizam o texto machadiano, a retórica da interrogação confere ao leitor uma certa liberdade. Dá-lhe autonomia para sentir-se sócio do autor, já que de sua resposta depende a confirmação (ou a refutação) do raciocínio que lhe está sendo proposto. Esta parceria com os leitores – recurso de que usa e abusa o próprio Machado – é bastante interessante (e muito rara) nos estudos literários.
O ensaio de crítica é um gênero por excelência intertextual e a presença de interrogação nele – ainda que retórica – representa um bem-vindo convite à discussão. Este livro sugere que Machado é, sim, um escritor universal e também um escritor brasileiro. Mas é só a partir deste estudo que se começa a dizer que Machado é um escritor brasileiro negro.


Marisa Lajolo é professora de literatura na Universidade Estadual de Campinas.
Texto publicado em http://revistapesquisa.fapesp.br/index.php?art=4047&bd=3&pg=1
Edição Impressa 137 - julho 2007

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