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“O amor, disse alguem, é uma jornada, cujo ponto de partida é o sentimento, e cujo termo inevitavel a sensação. Se isto é verdade, o que ha a fazer, é embelecer a estrada e chegar o mais tarde possivel ao fim. Ora, quem melhor que o homem de espirito sabe parolar á beira do caminho, parar e colher flôres, sentar-se às sombras frescas, recitar aventuras e procurar desvios e delongas? Um caracol de cabellos mal arranjado, um comprimento menos apressado que de costume, um som de voz discordante, uma palavra mal escolhida, tudo lhe é pretexto para demorar os passos e prolongar os prazeres de viagem. Mas quantas mulheres apreciam esses castos manejos, e comprehendem o encanto dessas paradas á borda de uma veia limpida que reflete o céo? Ellas querem o amor, qualquer que seja a sua natureza, e o que tolo lhes offerece é-lhes bastante, por mais insipido que seja.”
[de Queda que as mulheres têm para os tolos, tradução de Machado de Assis, em grafia conforme o original – Editora Crisálida]
Temos em mãos duas reedições de Machado de Assis: Chrysalidas (Belo Horizonte: Livraria Crisálida Ltda., 2000, 120p.) e Queda que as mulheres têm para os tolos e outros textos (Belo Horizonte: Livraria Crisálida Ltda., 2003, 88p.; pesquisa e organização de Oséias Silas Ferraz). Convém dizer algumas palavras sobre ambos.
A editora reproduz a grafia da edição original de Chrysalidas (1864), primeira coletânea de poesia do nosso Machado; o organizador informa que corrigiu apenas os evidentes erros tipográficos, mantendo rigorosamente o texto da edição princeps. Assim, o leitor terá condições de ler o volume tal como apareceu em vida do autor, pois a presente edição é a única reedição integral de Chrysalidas que já se fez, sem os cortes e alterações de palavras e versos que Machado operou quando da publicação das Poesias completas (1901).
Ao escrever as 29 peças de Chrysalidas, Machado de Assis ainda estava preso à poesia romântica; porém seu romantismo se afastava bastante de alguns postulados da escola, pois o poeta já manifestava a tendência de aperfeiçoar a métrica, ou seja, colocava-se numa posição um tanto precursora do nosso Parnasianismo. Utilizando de preferência o verso alexandrino, antecipava uma das constantes dos futuros parnasianos; seu cuidado com a métrica e o comedimento com a expressão que atinge por vezes a elipse, em "Ocidentais" fizeram-no muito respeitado entre os jovens que, desde os anos 1870, buscavam maior rigor tanto na forma como na maneira de expressar-se.
Contudo, Machado era ainda romântico, principalmente no que diz respeito ao sentimento de evasão, tão comum no Romantismo. Poemas como “Visio”, “Stela” e “Horas vivas” são exemplos de fuga para o sonho, ao passo que em “Musa consolatrix” a própria poesia serve-lhe de fuga. De todo modo, a poesia de Machado de Assis, ainda em seus começos, já mostrava uma certa insatisfação diante da realidade, o que só fez acentuar-se com o tempo.
Queda que as mulheres têm para os tolos e outros textos é uma coletânea de prosa variada, findando com o mais perfeito soneto que Machado já escreveu: “A Carolina”, em memória da esposa, falecida em 1904. Os demais textos são artigos de crítica, ensaios e um conto (“Teoria do medalhão”, p. 69). Observe-se que esta edição também respeita a ortografia da época empregada por Machado.
Ao publicar em volume Queda que as mulheres têm para os tolos (1861), o editor deu-o como “tradução do Sr. Machado de Assis”. O fato levantou dúvidas e durante muito tempo houve quem julgasse que o texto era do próprio Machado. Somente no ensaio Machado de Assis traducteur (edição mimeo, s/d., 1970?), o pesquisador francês Jean-Michel Massa consegue provar que a obra é de fato uma tradução de "De l'amour des femmes pour les sots", texto anônimo publicado em 1859 em Liège e em Paris, atribuído a um certo Victor Hénaux. Um dos motivos do engano da crítica sobretudo de Lúcia-Miguel Pereira foi que, segundo ela, a Queda já mostrava, em esboço, a “Teoria do medalhão”, um dos contos mais característicos da última fase de Machado. Contudo, sabemos hoje, aquilo era unicamente uma questão de afinidade...
As peças ensaísticas aqui reunidas estão entre as mais importantes de Machado: “Ideal do crítico”, de 1865, é um pequeno ensaio que aborda as condições necessárias para que se exerça crítica; por sua vez, em “Literatura brasileira Instinto de nacionalidade” (1873), temos um Machado de Assis que buscava examinar em que medida as nossas letras dispunham de um caráter especificamente nacional; ambos os textos mostravam que Machado tinha plena consciência não só do papel do crítico, mas também de que uma das exigências para a nossa literatura seria o que denominava “instinto de nacionalidade”, que a poderia distinguir das demais literaturas do mundo. Na crítica, Machado pode não ter deixado uma obra tão importante como a de sua ficção, mas é evidente que soube situar, desde a juventude, a função primordial do crítico literário.
“Elogio da vaidade” é uma “fantasia”, escrito que lembra Erasmo a partir mesmo do título. Trata-se de uma proposopopéia em que a Vaidade assume a palavra e faz o próprio elogio, chegando por fim à conclusão, aparentemente paradoxal, de que a maior vaidade é a vaidade da modéstia.
De certo modo, isto nos leva ao conto “Teoria do medalhão”: um pai, na noite do aniversário do filho, passa a instruí-lo na maneira de comportar-se em sociedade, ensinando-lhe hábitos, formas de se destacar, “como instrumento de luta para a conquista do prestígio” (Augusto Meyer. Machado de Assis. Rio de Janeiro: Livraria São José, 1958, p. 67.). E remata de modo altamente revelador, dizendo que aquela conversa “vale o Príncipe de Macchiavelli” (p.80). É uma peça bem própria de Machado, e está intimamente ligada não apenas ao conto “O espelho”, como quer Augusto Meyer (1958), mas a diversos outros, tornando-se, desse modo, um texto emblemático.
A edição da Crisálida é meritória por mais de uma razão. E não será descabido afirmar que preenche uma lacuna, pelo simples fato de colocar novamente em circulação alguns textos mal conhecidos do maior escritor brasileiro de todos os tempos.
LITERATURA NÃO TEM COR
Estudo revela “embranquecimento” de Machado de Assis
por Marisa Lajolo
A mulatice de Machado de Assis parece ter passado em branco em muitos estudos literários que acompanham, nesse processo de despigmentação textual, a galeria de fotos do escritor que também o embranquecem, fixando para a posteridade um respeitável senhor de barbas que a contempla com expressão indecifrável. Este embranquecimento de Machado parece articular-se à crença (amparada em algumas teorias) de que a literatura, sobretudo a literatura que se quer com L maiúsculo – a Literatura –, não tem cor nem sexo.
Mas tem: sexo e cor entraram na pauta de vertentes de ponta dos estudos literários. O recente livro de Eduardo Duarte, Machado de Assis afro-descendente (Rio de Janeiro, Belo Horizonte: Pallas/Crisálida, 2007), já nasce, assim, polêmico ao fazer uma releitura da obra do velho bruxo e, a partir dela, montar uma originalíssima antologia. Neste livro a afro-descendência de Machado se textualiza e um novo Machado insinua-se ao leitor, que, fisgado, se espanta com seus botões: como é que eu nunca tinha percebido isso? Com efeito, página após página – crônicas, poemas, contos e fragmentos de romance vão patrocinando uma releitura que vasculha, na obra machadiana, a presença de negros, de negras, de cenários e de assuntos ligados à escravidão.
Ao longo da antologia o leitor se surpreende pelos efeitos de sentido que a vizinhança de textos constrói. Surpreendem-se sobretudo os leitores familiarizados com a obra machadiana: é como se se estivesse contemplando uma galeria de quadros, todos muito conhecidos, mas aos quais o rearranjo confere uma perspectiva completamente nova.
O autor do livro encontra, no estilo do escritor, modos de dizer que representam a expressão formal da mestiçagem. No capítulo final, “Estratégias de caramujo”, um ousado gesto crítico retoma a figura do narrador machadiano e – discutindo-a uma vez mais – atribui a ela o afinamento de voz necessário para discutir negritude com os seletos leitores que, na época de Machado, liam-no nas revistas pelas quais circulavam suas histórias. Informando, ao longo da antologia, o modo de circulação original de cada texto, o livro permite vislumbrar ainda os itinerários que, no sistema literário, percorrem a literatura enquanto materialidade de texto impresso em papel.
O diapasão da voz machadiana é esmiuçado nos diferentes gêneros. O trabalho do autor do livro aloja-se no início em modestos rodapés, tornando-se minucioso e militante no ensaio final. Discute, desde um certo varejo do texto, como o nome de personagens, até aspectos de maior envergadura, como a articulação de grandes blocos narrativos. Na análise, estes blocos criam equilíbrios instigantes que, sugerindo muitas vezes cenas de paralelismo invertido, fazem eclodir no texto a velada violência que pautava o regime escravocrata vigente no Brasil e que talvez persista além da escravidão.
O olhar de Eduardo Duarte vai percorrendo a obra machadiana, contextualizando no modelo brasileiro da escravidão procedimentos textuais de Machado de Assis. Dentre as interpretações do crítico, a mais ousada é a que atribui ao caráter póstumo de Brás Cubas um valor político bastante alto: como diz o livro, Machado mata o senhor de escravos oito anos antes da abolição (p. 277).
Assumindo-se como sujeito de seu texto, o autor dialoga com a tradição crítica mais recente de Machado, optando às vezes por uma forma interrogativa de formular suas hipóteses. Ao alternar-se com interpretações categóricas e com informações que contextualizam o texto machadiano, a retórica da interrogação confere ao leitor uma certa liberdade. Dá-lhe autonomia para sentir-se sócio do autor, já que de sua resposta depende a confirmação (ou a refutação) do raciocínio que lhe está sendo proposto. Esta parceria com os leitores – recurso de que usa e abusa o próprio Machado – é bastante interessante (e muito rara) nos estudos literários.
O ensaio de crítica é um gênero por excelência intertextual e a presença de interrogação nele – ainda que retórica – representa um bem-vindo convite à discussão. Este livro sugere que Machado é, sim, um escritor universal e também um escritor brasileiro. Mas é só a partir deste estudo que se começa a dizer que Machado é um escritor brasileiro negro.