terça-feira, 24 de novembro de 2009

Rainer Maria Rilke, o poeta estrangeiro

O poeta estrangeiro

por Bolívar Torres

O poeta austríaco Rainer Maria Rilke (1875-1926) já era o responsável por algumas das principais obras-primas da língua alemã – como "A canção de amor e de morte do porta-estandarte Cristóvão Rilke", "Elegias de Duíno" e "Os sonetos a Orfeu" – quando, nos últimos anos de vida, já residindo na Suíça, resolveu adotar o francês. Depois de burilar o idioma de origem, alcançando o limite da abstração, resolveu partir para um novo desafio.
De seus 400 poemas francófonos, porém, apenas 86 haviam sido vertidos para o português.
O número aumenta agora com a publicação bilíngue de "As janelas, seguidas de poemas em prosa franceses", que traz traduções ainda inéditas no Brasil. Deixados prontos para impressão pelo autor (mas publicados somente em 1927, um ano depois de sua morte) e desconhecidos por aqui, os textos mostram um Rilke tateando em território virgem. Como se, ao chegar ao final de uma obra consagradora, sentisse a necessidade de abraçar outros sons, ritmos e palavras, voltando a assumir os riscos de um iniciante.
– A poética presente aqui passa pelo domínio incompleto de uma língua – explica Guilherme Gontijo Flores, tradutor dos versos da série As janelas. – Os resultados são diferentes dos poemas em alemão, mas não menos interessantes. Toda questão é contrair o que há de estrangeiro dentro da língua. Em outro idioma, ele consegue retomar um estado de encantamento com o mundo, bem próprio de uma criança.
Alma atrás dos objetos
Os 10 poemas do ciclo As janelas juntam-se às traduções de outras duas de suas séries “francesas”: Jardins e As rosas. Todas trazem, como em suas obras alemãs, o mesmo apego ao concreto – o que seu mestre, o escultor Auguste Rodin, chamava de “lição de coisas”. Nada da matéria universal lhe é indiferente. Rilke parte da figura exata de uma janela (objeto de passagem e transição por excelência) e a transforma em um simulacro da fantasia humana – espécie de “moldura viva”, jogo de olhares e projeções entre o que está dentro e fora de sua geometria (quem está fora fantasia e poetifica o que está dentro, e vice-versa).
Paradoxalmente, encontra na concretude absoluta do objeto a sua dose de transcendência.
Em sua Homenagem a Rainer Maria Rilke, o escritor francês Edmond Jaloux lembra o culto que o poeta dedicava aos objetos: “Ele falava deles com um tom singular.
A mínima coisa tocada se transformava, em suas mãos, num talismã, uma maneira de corresponder com qualquer coisa de invisível, a alma escondida atrás da matéria”.
– É como se ele buscasse a alma por trás do objeto – ressalta Flores.
– Ele trabalha com a subjetividade do observador, mas ao mesmo tempo passa o olho para a própria coisa, a figura da janela em si.
O tradutor diz que adotou um processo de “recriação poética”, que seria mais apropriado a uma edição bilíngue.
– A percepção inicial é que, para Rilke, o ritmo e enquadramento das rimas é uma questão fundamental – esclarece. – A métrica não é rigorosa, mas há uma musicalidade, cujo ritmo é marcado pela rima. O mais importante era garantir que esse projeto estético de enquadramento passasse na tradução, alcançasse um equivalente, e que os originais dialogassem com suas traduções, numa tentativa de unir ética e estética.
Já os poemas em prosa reunidos no livro não foram publicados em vida pelo autor. Rilke adotou o formato (popularizado nos século 19 por Baudelaire, poeta que o fascinava) em obras importantes, como "A canção de amor e de morte do porta-estandarte Cristóvão Rilke".
– Rilke, em seu “recomeçar” poético em outra língua, também fez incursões no poema em prosa que não atraem apenas pela forma.
Como se não pretendesse ficar em dívidas com a França – avalia Bruno Silva D’Abruzzo, tradutor dos poemas em prosa. – Uma leitura mais pausada desses textos revela alguns temas recorrentes na obra do escritor.
Neles, aparece, por exemplo, a figura do saltimbanco, que inspirara Rilke em sua famosa Quinta elegia, na qual, segundo José Paulo Paes, “versa o tema de um quadro de Picasso, Os saltimbancos, que causara funda impressão em Rilke. Já em Cimetière, encontramos “versos” que nos remetem àqueles que o poeta compôs como seu epitáfio.


(Jornal do Brasil - Domingo, 22 de Novembro de 2009)
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